ENTREVISTA: Carla Valencia Dávila, na 3ª Mostra de Cinema da América Latina

CARLA VALENCIA DAVILA foto alfredo mora manzano

Cinemaville: O filme Abuelos começa com uma frase linda do seu avô, que disse “tu nunca vais morrer porque eu estou a descobrir a imortalidade”. Este documentário é uma homenagem, uma forma de tornar os seus avós imortais?

Carla Valencia Dávila: No filme surgem dois livros: um de ficção, de um autor equatoriano, chamado Deuses, Semideuses e Astronautas, onde o personagem principal, baseado no meu avô Remo, descobre a imortalidade, faz chover e outras coisas que o meu avô também “fazia”; e um outro, mais documental, sobre testemunhos de prisioneiros nos campos de concentração de Pisagua, escrito por um repórter que esteve nesses campos com o meu outro avô, que fala dele e através do qual soube muitas coisas que desconhecia. Descobri estes dois livros na mesma altura e percebi que tinha ali dois personagens, duas histórias que se podiam contar. Há imensos filmes sobre a ditadura militar chilena e não pretendia fazer mais uma abordagem apenas sobre isso. A relação que eu tinha com o meu avô equatoriano era tão forte que, sim, acabou por ser uma homenagem, mas esse não era o objectivo fundamental. Foi a descoberta destes dois documentos que desencadeou a ideia principal para começar a fazer este filme.

a relação mais importante entre estes dois personagens é a sua convicção ao lutar por algo incondicionalmente

CV: Sendo um documentário tão próximo e íntimo, como é que separou a neta da realizadora? Como é que equilibrou o lado emocional com o lado racional neste trabalho?

CVD: Não houve propriamente uma separação, é difícil separar. Por um lado comecei a investigação sobre Pisagua e o meu avô desaparecido que eu nunca conheci. O seu corpo apareceu quando eu tinha 15 ou 16 anos e só nessa altura conheci a sua história e em minha casa se falou dele, porque era um tema doloroso. O meu pai deixou o Chile com 19 anos e nunca mais regressou, desde então nunca mais viu o seu pai, por isso era um assunto de que não se falava. A partir daí comecei a interessar-me, desde logo porque nas fotografias o meu avô e o meu pai eram fisicamente muito parecidos, e tive aquela curiosidade de saber “de onde venho”. Por outro lado, quando morreu o meu avô equatoriano, o imortal, foi um choque, porque desapareceu a pessoa que nos ia salvar a todos. Por isso, quis contar como é que ele chegou a essa ideia da imortalidade, mas também contrariar um pouco o facto de quando as pessoas mais importantes da tua vida desaparecem ninguém dizer ou fazer coisa alguma. Parece que o tempo passa e pouco a pouco começas a desvincular-te, a vida continua como se fosse normal que as pessoas desaparecem do planeta e acabou-se. Eu não me queria separar deste avô e procurei aproximar-me dos seus amigos, dos seus pacientes, de pessoas que não teria conhecido de outra maneira. Tinha vontade de fazer um documentário, mas era sobretudo um objectivo pessoal, então não creio que tenha havido propriamente uma separação. Na montagem foi diferente, porque até ali havia muitas entrevistas que eram emocionalmente fortes para mim, mas depois de as ver dez vezes foi-se perdendo o peso das sensações que me provocavam e, aí sim, fiz uma separação mais racional.

CV: O que é que guarda pessoalmente destes mundos tão extremos dos seus avós que, como realizadora, transporta para o seu trabalho?

CVD: Eles tinham coisas em comum, viveram a mesmo época, embora em diferentes países e sem se conhecerem. Ambos eram do partido comunista e ateus, algo que não digo no filme porque procuro estabelecer diferenças e não semelhanças. É verdade que comecei a trabalhar nos aspectos que me eram mais próximos política ou ideologicamente, mas depois comecei a distanciá-los para que fossem duas histórias que avançam independentemente. Creio que a relação mais importante entre estes dois personagens é a sua convicção ao lutar por algo incondicionalmente e a sua paixão levou a que as suas vidas se centrassem ao redor dessa missão, especificamente – um tinha que ver com a medicina, outro com a política – e foi isso que quis transmitir neste filme. Os dois morrem como resultado das suas lutas: um outro intoxicado em busca da imortalidade, o outro aprisionado e assassinado.

CV: Sendo tão pessoal, a sua história pode ainda assim criar identificação em muitas outras pessoas. Tem recebido feedback nesse sentido?

CVD: Sim, normalmente após a projecção do filme isso tem acontecido, mas depende do país. Na Holanda, por exemplo, as perguntas eram mais centradas na medicina e no realismo mágico do meu avô médico. Por seu turno, no Chile as perguntas viraram-se obviamente para os desaparecidos e para o facto de na vala onde foi encontrado o corpo do meu avô se terem encontrado mais 20 corpos. É um tema que, passado tanto tempo (cerca de 50 anos), continua a gerar muita curiosidade nas pessoas. Além disso, muita gente me tem falado e escrito sobre os seus próprios avós e isso é muito agradável.

[No cinema] a verdade não existe: é sempre uma forma de ficção em que tu decides o que contas, como o dizes e o que colocas em plano

CV: Qual a importância de eventos como a Mostra de Cinema da América Latina para a exibição dos seus filmes, comparativamente com o circuito comercial?

CVD: Este tipo de festivais são importantes justamente porque permitem passar filmes mais pequenos e independentes. Falando do meu caso, Abuelos é um documentário, por isso acaba por se tornar ainda mais pequeno. Ainda assim, este filme já esteve em alguns festivais, cerca de 57. No Equador, há mais filmes documentais do que de ficção, por várias razões, sobretudo económicas, suponho, porque é muito mais barato fazer documentários. Lancei este filme em algumas salas de cinema no meu país, embora pequenas e independentes, mas ainda que fosse possível chegar a algumas salas grandes, de tipo multiplex, é absurdo competir com o Harry Potter ou o Homem-Aranha. Não há propriamente um público consumidor de filmes independentes e os festivais são importantes nesse sentido, para mostrar outro tipo de cinema.

CV: A maior parte destes festivais atribuem prémios monetários. São de algum modo importantes e significativos na realização de mais projectos?

CVD: Os prémios de festivais de cinema, sobretudo os de documentários, são muito pequenos. Valem mais pelo reconhecimento do que propriamente pelo suporte monetário. Com este filme já recebemos em dois festivais o prémio do público que é, porventura, o mais bonito. Acho que no Dubai há um festival em que oferecem 150 mil dólares, imagino que esse tipo de prémio permita fazer um novo projecto, mas normalmente não. Os fundos para fazer cinema no Equador e na américa latina em geral são estatais. Pelo menos no Equador, não existem investidores privados, pelo que os filmes se fazem com apoios do Estado, que existem apenas há seis anos.

acredito que é possível apaixonarmo-nos pelas coisas e fazê-las como entendermos

CV: O que nos reserva o seu futuro como realizadora?

CVD: Recentemente ganhámos um fundo para realizar um novo documentário que não terá nada de pessoal. Trata-se de um filme experimental – consequentemente mais difícil de exibir em salas comerciais, mas isso não me importa, – sobre os sentidos, em que todos os protagonistas são cegos. A ideia é tentar passar pelas diferentes etapas da vida com descrições estranhas e poéticas do quotidiano. Estou a trabalho com um jovem casal de namorados, com uma mulher grávida e com um idoso viúvo.

CV: Está nos seus planos realizar alguma vez uma longa-metragem de ficção?

CVD: Tenho um certo conflito ético com a ficção. Gosto muito de ver ficção, mas prefiro trabalhar com quatro pessoas num documentário e ainda assim gastar mais dinheiro do que alguma vez gastei a fazer algo na minha vida. Na ficção é tudo dez vezes maior e de alguma forma considero que deixa um “rasto de destruição” por onde passa. Já trabalhei em obras de ficção de outros realizadores, na direcção de arte, e há toda uma hierarquia profundamente impessoal. Num documentário chegas a um local para filmar respeitando mais essa realidade, não propriamente a verdade, porque ela não existe: é sempre uma forma de ficção em que tu decides o que contas, como o dizes e o que colocas em plano. Não creio que vá algum dia fazer uma longa-metragem de ficção, apenas curtas-metragens, rodagens de três dias, projectos audiovisuais experimentais em que podes errar, podes experimentar lentes, etc.

ABUELOS DIRECTORA EN RODAJE foto daniel andrade

CV: Que papel atribui à educação formal e da formação? Acha que é uma base indispensável ou que se pode ser realizador saltando essa etapa?

CVD: Os estudos podem dar uma base sobretudo informativa, uma injecção de conhecimento, bem como ajudar a perceber que domínio do cinema mais te interessa, seja a montagem ou a direcção de arte, o documentário ou a ficção. Pessoalmente nunca estudei cinema e não tive nenhum problema em realizar ou concretizar as ideais que tenho. A única lacuna que noto é em relação a certos aspectos teóricos do cinema clássico, que colegas meus têm como referência, embora tenha vindo a conhecer alguns com o tempo. Mas é absolutamente exequível ser realizador sem estudar cinema, existem imensas pessoas que são prova disso. Claro que não sou contra a educação, mas acredito que é possível apaixonarmo-nos pelas coisas e fazê-las como entendermos.

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