Partindo desta notícia, a que se junta ainda esta, e aproveitando o mote d’O Homem que Sabia Demasiado, reflectimos aqui sobre a questão da violência ficcional e o seu hipotético transbordo para a realidade. É sempre impressionante ver como após fenómenos trágicos como o recente massacre na escola de Newtown, ou os assassinatos do verão passado na estreia d’O Cavaleiro das Trevas Renasce, em Aurora, se multiplicam os professores de Sociologia e Psicologia de sofá, decididos a apontar o seu dedo pouco mais que moralista.
Há poucos dias, a National Rifle Association (NRA) atribuiu inequivocamente responsabilidades no incidente de Newtown à violência presente nos filmes e nos videojogos. Mas vai mais longe e defende não só o policiamento armado em todas as escolas como o (gritante) incentivo a um maior uso de armas como medida de prevenção e segurança, justificando que “a única coisa que pode travar alguém mal-intencionado com uma arma é alguém bem-intencionado com outra.” Refutar este argumento não pode aqui ser confundido com a apologia da violência ao serviço da arte. Nem se trata apenas de não querer que Scorcese, Tarantino e outros notáveis deixem de fazer arte com a violência. Até porque, assim como o sexo, ela existe no cinema maioritariamente porque isso é bom para o negócio e não como recurso artístico.
Não se pretende neste texto apurar a culpa definitiva nem, em nome do cinema, empurrar a responsabilidade com a barriga. Não existindo “culpa” atribuível à sétima arte, não se nega que possa haver uma certa ligação, mas jamais será de causa efeito e muito menos exclusiva. Senão vejamos: a indústria do cinema, como quase todas, está mais do que nunca globalizada. Ora, se esta “violência desenfreada”, como a classifica a NRA, é consumida mundialmente em sociedades tão díspares, o que é que explica que a média de assassinatos anuais envolvendo armas seja de mais de 10.000 nos Estados Unidos da América (EUA) e de poucas dezenas em países como o Japão ou o Reino Unido?
Na prática, assiste-se a uma batalha entre duas emendas da constituição norte-americana: a primeira confere a liberdade de expressão; a segunda garante a qualquer cidadão o direito a possuir e usar armas. Entretanto, não podemos esquecer que a fundação dos EUA foi ela própria cimentada por via das armas. Mais, os EUA sempre tiveram uma obsessão pelas armas e pelo monopólio do poder armado, para além de que o negócio do armamento é um dos mais lucrativos do país.
Em tom de analogia, se parece óbvio que um indivíduo não se torna pedófilo ou burlão por utilizar a Internet, provavelmente nada o vai impedir de a utilizar para desenvolver actividades dessa natureza. Culpemos a Internet e acabemos com ela? O facto é que um indivíduo com algum tipo de distúrbio psicológico estará sempre mais vulnerável tanto a assistir a um filme como a ler um livro, a olhar para um quadro ou a ouvir música. Não é possível regular e prever tudo e é por isso que este tipo de incidentes desviantes são tão imprevisíveis, porque a sua explicação está longe de ser simples e a existência deste tipo de actos bizarros e horrendos é bem mais antiga do que a maior parte das formas de arte.
Poderia uma classificação mais rigorosa dos filmes ser uma atenuante? Genericamente, o panorama actual a esse respeito revela uma maior tolerância relativamente a conteúdos sexualmente explícitos e uma menor margem para a violência na Europa, enquanto nos Estados Unidos acontece precisamente o inverso. Coincidência? Também não podemos descurar o papel de uma educação negligente ou, pela positiva, a importância não só da filtragem daquilo a que as crianças assistem mas sobretudo do acompanhamento dos seus conteúdos. No meio de tudo isto, que dizer dos mass media que, a cada dia mais sensacionalistas, transformam psicopatas e assassinos anónimos em figuras públicas?
A única certeza é a de que este tipo de fenómeno não é linear, porque a sociedade é ela própria complexa e multidimensional, pelo que seria pouco honesto tentar decifrar em menos de 5.000 caracteres a sua derradeira explicação. Mas se fizer sentido que os produtores e realizadores reconsiderem a incorporação da violência nos seus filmes, que deveriam a NRA e o estado norte-americano fazer relativamente à política de posse e uso de armas? Ou posto de outra forma: será potencialmente mais perigoso ver um personagem a matar indiscriminadamente ou ter uma arma verdadeira na mão?