A nova criação de Quentin Tarantino arranca uma polémica página da história dos Estados Unidos da América e acrescenta-lhe a sua dose de humor e violência. Na sequência do que sucede no anterior Sacanas Sem Lei relativamente ao nazismo, em Django Libertado continua presente a vontade de vingar no cinema períodos particularmente obscuros da história da humanidade. Desta feita o argumentista e realizador aponta à escravatura e situa este épico no Texas, dois anos antes da Guerra Civil. Neste cenário, não se poupa em expor graficamente a crueldade da exploração racial nas suas diversas formas, pondo o dedo em múltiplas feridas, sempre em estilo arrojado – a associação da bíblia à tortura de escravos e a cena hilariante em torno do problema de logística de uma seita à imagem do Ku Klux Klan são claros exemplos.
Todo o filme vive, antes de mais, de um argumento de génio com todos os ingredientes a que Tarantino nos acostumou: um motivo desconcertante, um enredo complexo, um amplo leque de personagens com profundidade, diálogos eloquentes e um grand finale. Porém, dando a trama como garantida, são os olhos que rejubilam com a forma belíssima como é filmada esta a jornada entre o sol escaldante e a neve gélida e a cada vez que nos recordamos que ninguém faz cair cadáveres e jorrar sangue como Tarantino.
Ao mesmo tempo, é evidente o tributo ao género western spaghetti, sendo inúmeras as referências a realizadores como Sérgio Corbucci, autor do filme Django de 1966, ou Sérgio Leone, criador de um punhado de westerns clássicos. No genérico inicial, nos planos em contra-luz ao pôr-do-sol ou mesmo no “duelo” com um boneco de neve, Tarantino faz-lhes a devida homenagem, mas transcende-se com a sua capacidade rara de oscilar a grande velocidade entre os pólos do humor e da violência extrema. Mais, demonstra um domínio técnico absoluto e uma variedade incrível de planos, fazendo zooms como quem dá chicotadas, apenas porque sim. Juntemos-lhe um lettering icónico e uma salada musical perfeita, que atravessa Beethoven tocado na harpa, John Legend, Ennio Morricone, 2Pac ou Johnny Cash, e temos uma obra de arte.
Mas não pode ser esquecido que, apesar de tudo, esta é uma história de amor. Por um lado, Django, interpretado por Jaime Foxx que, embora esteja em plano, tem de ser apontado como o elo mais frágil de um naipe de performances memoráveis, tem um propósito bastante clássico: salvar a sua amada, Broomhilda (Kerry Washington). Por outro lado, o Dr. King Schultz (Christopher Waltz), abolicionista, outrora dentista, e agora caçador de prémios, decide ajudar Django e torna-se o elemento que desestabiliza o status quo. Desta feita desempenhando uma figura benevolente, porém não menos brilhante, a presença de Waltz em cena quase sempre ofusca as demais, sobretudo com a sua ironia erudita absolutamente deliciosa.
Considerando esta missão conjunta de Django e Schultz, é a chegada à propriedade Candyland que dá a maior alavancagem à narrativa. Lá encontram Calvin Candie, o vilão extravagante personificado pelo desempenho mais sinistro de Leonardo DiCaprio até à data. Por perto está sempre Stephen, incorporado por Samuel L. Jackson que, com esta performance densa e memorável, se reafirma como um actor de referência na filmografia de Tarantino.
Numa frase, Django Libertado é uma contagiante jornada de vingança com uma atitude punk, uma narrativa viciosa com enorme poder de fogo que pisa a linha e ensopa de sangue o moralismo. Afinal de contas, é por isso que o filme é de Tarantino.
Classificação (0-10): 10
Django Libertado | 2012 | 165 mins | Realização e Argumento: Quentin Tarantino | Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Kerry Washington e Samuel L. Jackson.
“ninguém faz cair cadáveres e jorrar sangue como Tarantino”
“Samuel L. Jackson que, com esta performance densa e memorável”
concordo plenamente =D
I like the way you comment boy 🙂