«O Mordomo»: testemunha da história e pilar da Casa Branca

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O Mordomo é a quarta longa-metragem do realizador Lee Daniels, que surpreendeu pela primeira vez o mundo do cinema com Precious, que acabaria por vencer dois Oscars em 2009. Este novo filme resulta de uma adaptação consideravelmente livre de um artigo do Washington Post, que retrata um homem negro que serviu na Casa Branca durante largas décadas, trabalhando para um total de sete presidentes. A narrativa estende-se desde 1924 até à histórica eleição de Barack Obama em 2008, mas o primeiro plano do filme apresenta-nos Cecil (Forest Whitaker), o protagonista, sentado na sala de espera da Casa Branca e enquadrado entre os pilares do edifício. Por esta altura não podemos saber exactamente o que faz ali, mas analogia que Daniels desenvolve nos seguintes 132 minutos fica patente: Cecil, assim como os demais “serventes” negros da Casa Branca, é também ele um pilar fundamental da história americana e da conquista dos direitos civis ofuscados pela segregação racial.

Com uma infância castigadora e entregue a si mesmo, Cecil vai aprendendo a arte da serventia, aperfeiçoando-a ao ponto de, em idade adulta, lhe ser oferecido um trabalho na residência oficial do presidente norte-americano, o ponto mais alto de uma carreira de mordomia na qual lhe pedem que se desligue de quase todas as faculdades humanas básicas: sentir, falar, interagir para além do protocolo era absolutamente intolerado. Este será um trabalho esgotante com grande impacto na sua dinâmica familiar: a mulher (Oprah Winfrey) começa a sentir-se solitária e apoia-se no álcool; o seu filho mais velho, Louis (David Oyelowo), alimenta uma distância ideológica face ao pai que se vai acentuando à medida que mergulha mais fundo no activismo militante pela conquista da igualdade racial.

Aliás, esta relação pai/filho é a espinha dorsal do filme, pois é nesta dialéctica de valores e atitudes que se vai desenrolando o devir da história da luta pelos os direitos civis dos afro-americanos, desde os movimentos liderados por Martin Luther King ou Malcolm X até aos Panteras Negras, chegando ainda a manifestações anti-apartheid.

Uma das melhores sequências do filme estabelece mesmo um paralelo visual entre duas posições contrastantes: enquanto o pai serve silenciosa e imaculadamente a elite política americana composta por caucasianos, o filho recusa-se a ser servido ao balcão segregado e dirigidos exclusivamente a negros, arriscando-se mesmo a partir alguns pratos (leia-se costelas). Esta sequência constitui a metáfora perfeita para as diferentes visões e posturas – e por conseguinte a própria relação – entre pai e filho.

A escuridão não pode expulsar a escuridão, apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio, só o amor pode fazer isso. – Martin Luther King

Com o tempo, tanto o pai como o filho, tanto o conformado como o dissidente, vão se equilibrando e encontrando nestas palavras de Luther King alguma inspiração, compreendendo-se mutuamente cada vez melhor.

É que, em abono da verdade, existiu sempre uma inconsciente subversão do pai e dos demais criados negros desde o primeiro momento em que serviram na Casa Branca: embora proibidos de frequentar livremente uma grande quantidade de locais públicos, privaram e conviveram de forma (progressivamente mais) próxima com diversos líderes norte-americanos no edifício simbolicamente mais relevante da esfera política mundial.

Quanto ao actores, Forest Whitaker é irrepreensível, excepto talvez ao nível da narração (talvez porque ninguém o faça tão bem como Morgan Freeman…), ao passo que Oprah Winfrey também surpreenderá pela positiva quem apenas a conhecer como anfitriã do seu famoso talk-show. No entanto, a abrangência temporal joga a desfavor de grande parte do elenco, uma vez que o ritmo acelerado não permite – ou torna difícil – aprofundar as personagens que correspondem a figuras histórias. Os avanços cronológicos abruptos fazem com que muitas personagens, sobretudo os presidentes, se mostrem algo superficiais, mesmo quando desempenhadas por actores com provas dadas (o caso mais gritante será o de Robin Williams na pele de Eisenhower ou o de Alan Rickman como Ronald Reagan).

Tecnicamente Lee Daniels não arrisca nem compromete, mostrando em O Mordomo uma faceta mais conservadora, sobretudo quando comparado com exercícios cinematográficos de maior irreverência como Precious ou The Paper Boy – Um Rapaz do Sul, e é ajudado por uma banda sonora maioritariamente original criada pelo músico português Rodrigo Leão, que sendo discreta (no melhor dos sentidos) é sublime quando baste para amplificar as emoções sempre que o enredo o exige.

Concluindo, O Mordomo é um filme que mostra ao mundo de forma competente uma história extraordinária e que, pelo menos por isso, merece ser visto sem grandes reservas.

Classificação (0-10): 7

O Mordomo | 2013 | 132 mins | Realização: Lee Daniels | Argumento: Danny Strong e Wil Haygood | Elenco principal: Forest Whitaker, Oprah Winfrey e John Cusack

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