15 de Agosto de 1947. Ao soar da meia-noite começa um dia histórico, no qual a Índia se torna politicamente independente da Inglaterra, mas este é também o momento em que tem início uma história muito especial. Na verdade, a linha temporal do filme começa muito antes, em 1917, seguindo até 1977 e atravessando várias gerações e cerca de 65 localizações.
Os Filhos da Meia-Noite é o mais recente filme de Deepa Mehta, que parte do aclamado romance com o mesmo nome do autor Salman Rushdie. De resto, esta adaptação ao cinema nasce de uma amizade entre a realizadora e o escritor, ambos parte da diáspora indiana, e resulta numa estreita colaboração que envolve Rushdie como argumentista, produtor e até narrador, o que acrescenta um peso extraordinário e um lado intimista às palavras, valorizando cada vírgula deste romance que é, nas palavras do próprio, “uma carta de amor à Índia.”
“A Índia e o Paquistão nasceram lavados no sangue um do outro”
Esta narrativa apresenta essencialmente duas grandes dimensões. Por um lado, e como pano de fundo, surge o contexto histórico da independência da Índia e dos conflitos com o Paquistão, mas também, mais tarde, a guerra do Bangladesh em 1971 e o “estado de emergência” de meados da década de 1970, decretado por Indira Gandhi. Por outro lado, e apesar das suas raízes num universo geográfico e cultural muito específico, o filme evoca um tema universal que toca à humanidade em geral, centrado na troca à nascença de dois bebés. também eles filhos da meia-noite.
Esta duplicidade entrelaçada do nascimento de dois bebés e de dois países é a substância que une a trama do filme, com um toque de magia à mistura que lhe dá um tom de fábula. Isto porque não apenas
Saleem (Satya Bhabha em fase adulta) e
Shiva (Siddharth) mas todas as crianças nascidas naquela hora apresentam faculdades mágicas e sobrenaturais, comunicando telepaticamente (uma possível alusão às c
rianças índigo).
Contudo, os dois filhos da meia-noite em torno dos quais se centra a história levam à colocação de uma questão maior: a construção da identidade através do outro.
“A maioria das coisas essenciais da nossa existência acontecem na nossa ausência”
Rushdie coloca em equação o determinismo das condições de partida na vida de alguém, e a suposição de que, invertidos os seus percursos, de algum modo Saleem e Shiva seguiriam caminhos semelhantes, essencialmente fruto da sua envolvente.
Trata-se de uma belíssima odisseia multi-colorida (ainda que sem a hiperbolização estética de Quem Quer Ser Bilionário?), bem filmada e recheada de momentos de humor e emoção, suportada consistentemente por um elenco pouco ou nada conhecido do grande público (a maior parte dos actores fizeram a sua estreia num filme falado em inglês).
E é fundamentalmente uma forma sentida de contar os destinos de Índia e Paquistão, que é não apenas complexa mas também educativa, num género de filme algo em desuso na medida em que, sendo uma produção de larga escala, poderia dizer-se mesmo um épico, cruza as narrativas pessoais e familiares das personagens com os desígnios da história colectiva.
Apesar de tudo isto, o filme mostra-se incapaz de fazer a devida justiça ao peso e à densidade do livro. Quem sabe o formato de mini-série (que esteve nos planos da BBC) lhe fosse mais favorável, já que Os Filhos da Meia-Noite parece paradoxalmente demasiado curto para desenvolver em profundidade a história e demasiado longo para manter a coesão e o entusiasmo.
Classificação (0-10): 7
Os Filhos da Meia-Noite | 2013 | 146 mins | Realização: Deepa Mehta | Argumento: Salman Rushdie | Elenco principal: Satya Bhabha, Shahana Goswami e Rajat Kapoor