
Gravidade
Este artigo pode conter informação que, não sendo spoiler explícito, pode antecipar acontecimentos para quem não viu o filme. Abrindo aqui uma excepção nesse capítulo, considerei serem factos essenciais para a escrita deste artigo. Tendo isso em conta só agora foi publicado, uma vez que grande parte do público poderá ter visto o filme e assim comparar a esta perspectiva com a sua, tornando a leitura deste artigo possivelmente mais interessante.
Realizado por Alfonso Cuarón, Gravidade é um filme sobre o princípio e o fim da vida humana. Em 91 minutos, temas existênciais da condição humana, como a mortalidade intrínseca, são abordados em contexto espacial. Ryan Stone (Sandra Bullock), uma engenheira que está a criar um protótipo para ser usado em contexto hospitalar e uma novata em termos de missões espaciais, acompanha Matt Kowalski (George Clooney), astronauta em fim de carreira que embarca na sua última missão para reparar o telescópio Hubble antes de se reformar. Tudo muda quando a Rússia lança um míssil para destruir um satélite seu, causando uma reacção em cadeia: pedaços colidem com outros satélites, multiplicando o número de partes metálicas em órbita e em rota de colisão com os astronautas e a sua nave (não fosse a Rússia o eterno inimigo dos E.U.A., são aqui novamente o bode expiatório). Teorias da conspiração à parte, a acumulação de lixo espacial está a tornar-se um verdadeiro problema para as missões espaciais e a crítica subjacente é mais do que pertinente.
Gravidade aborda a origem da vida, podendo ser dividido em três partes: I – ausência de vida: no espaço, onde é impossível existir vida, onde todo o pequeno deslize significa o fim da linha para os astronautas. II – gestação: o desenrolar do filme e as decisões de cada um dos astronautas confluem para um fim que potenciou uma vida (ou a continuação dela). O plano de Sandra Bullock na câmara de despressurização na Soyuz invoca um feto no ventre materno ligado à vida pelo cordão umbilical (tubo que transporta oxigénio para o fato). Neste caso a nave acaba por ser a cápsula que mantém os astronautas vivos. III – vida: a chegada à Terra e a sua evolução.
Uma possível interpretação da cena da entrada da cápsula de fuga no planeta, bem como dos detritos da nave, é uma ilustração da teoria da Panspermia, que consiste na hipótese de que a vida foi trazida à Terra do espaço em meteoritos que abrigavam formas de vida primárias. Oferecendo condições propícias para o desenvolvimento da vida, foi em meio aquático (a cápsula caí no oceano e é nesse ambiente que a vida ou se adapta ou morre) que primeiramente se desenvolveram moléculas complexas que originaram os primeiros organismos, e só depois a vida se desenvolveu em terra, tal como o indicia o plano sequência meticulosamente estruturado no final do filme.
Chegando à Terra a teoria é outra e avançamos milhares de anos até à espécie humana. A teoria é a da Evolução das Espécies, proposta por Charles Darwin e a antropogênese, ou evolução humana: vemos um ser humano a tentar erguer-se, adoptando várias posições, relembrando a evolução do Australopitecos até ao Homo Erectus e ao Homo Sapiens Sapiens, finalizando com um grande plano contra-picado, dos pés até à altura máxima do Homem, enaltecendo a verticalidade humana e o seu domínio sobre o planeta. A corroborar esta ideia há o pormenor de uma fotografia a preto e branco de Darwin colada na nave Soyuz, (na imagem infra surge debaixo do pulso de Bullock) assim como a semelhança da área onde a cápsula aterra com as ilhas Galápagos.
O contexto do espaço funciona como uma constante metáfora para ambas as personagens: por um lado a Dra. Ryan Stone, personagem feminina com uma fragilidade tanto profissional, uma vez que apenas teve um pequeno treino de seis meses, como interior. Ela representa alguém que se desligou do seu lado humano fruto de uma perda irreparável e que sobrevive através do automatismo da vida, um mero robô que é funcional apenas na sua profissão. O espaço acentua essa dimensão de isolamento, de estar no vazio em direcção ao nada. Mais uma vez a questão da vida está espelhada também na construção das personagens: é a mulher que carrega o poder de continuar a dar vida e a perpetuar a espécie, mas como compreendemos ao longo do filme, estar vivo é uma condição muito frágil… Por outro lado, Matt é o típico space cowboy, um astronauta experiente que vai espalhando um mau presságio face àquela missão mas também um fala barato que a encara como mais uma visita turística que lhe proporciona a mais bela vista sobre o planeta,
A terceira personagem, o próprio planeta Terra, tem um papel preponderante, não só pela beleza com que enche a tela, como pela responsabilidade de fazer orbitar as naves e os satélites à sua volta, mas principalmente porque é a força da gravidade que retém os componentes essenciais cativos no planeta para que a vida possa existir.
Cuarón escreveu o argumento com o seu filho Jonás Cuarón, mas este filme é muito mais do que uma narrativa linear. Trata-se de uma experiência cinematográfica que traz de volta a sensação de arrebatamento que só a magia e ilusão do cinema podem provocar, trazendo à memória o efeito provocado por A Chegada do Comboio à Estação de La Ciotat, dos irmãos Lumiére.
Este é um filme em que as condições de visionamento determinam a real imersão na realidade transmitida. Antes de mais, ver no grande ecrã é uma prioridade, mas mais do que isso este é um exemplo em que tecnologias como o 3D e o IMAX fazem com que a audiência se sinta verdadeiramente mergulhada no espaço. De igual modo, o som e a sua envolvência ajudam na experiência de imersão. A banda sonora é inteligentemente calculada para que momentos de trilha musical densos sejam contrapostos com a realidade crua do filme: o som não se propaga no espaço. Nos primeiros minutos o som é denso e forte, vemos o ecrã preto, o título, e logo a seguir o vazio, ouvindo-se apenas as comunicações dos astronautas. O que pode parecer um início fraco, no sentido em que pouco acontece, revela-se um plano-sequência brilhante que estabelece a linguagem do filme daí em diante.
O realizador afirma ter-se inspirado em documentários IMAX como o Hubble (2010) e que não quis fazer um filme de ficção científica mas algo que realmente espelhasse a realidade do que é estar no espaço na actualidade. O desafio de captar o som num ambiente insonoro, onde apenas se ouvem as vozes dentro dos capacetes, torna a reprodução fidedigna mais desafiante, fazendo com que a banda sonora seja muitas vezes a respiração e o ofegar das personagens, ou o bater do coração, tornando a história mais real e paralisante. A tecnologia usada teve de ser inventada para que este filme fosse realizado, tendo sido necessários quase cinco anos para o concluir, e é notória a complexidade e a perfeição dos planos em que a câmara filma em 360 graus, sem relação com nenhum eixo e com total liberdade de movimentos, comportando-se de acordo com a ausência de gravidade.
Sem dúvida um dos melhores filmes da década, minuciosamente elaborado e com uma representação arrebatadora de Sandra Bullock, que certamente lhe valerá muitos prémios (ultimamente tem demonstrado grandes prestações, como em Um Sonho Possível, de 2009), Gravidade é uma obra que inspirará gerações de realizadores e que (re)lança o cinema para um futuro desconhecido que certamente nos continuará a surpreender.
Classificação (0-10): 9
Gravidade | 2013 | 91 mins | Realização: Alfonso Cuarón | Argumento: Alfonso Cuarón e Jonás Cuarón| Elenco principal: Sandra Bullock, George Clooney, Ed Harris