Na mais recente edição do Festival Córtex assistimos a uma curta-metragem que nos ficou na retina pela forma directa e inteligente como retrata uma realidade social tão presente na contemporaneidade. Deus Dará é uma curta-metragem que olha para a criminalidade de modo multidimensional e realista, mostrando no sub texto que os mecanismos que levam à criminalidade sem bastante complexos. O jovem e promissor realizador deste filme é Tiago Rosa-Rosso, com quem tivemos o privilégio de conversas e assim conhecer melhor a sua visão que partilhamos nesta entrevista.
Cinemaville: Em primeiro lugar gostávamos de saber quando e como decidiste tornar-te realizador de cinema e qual o teu percurso até ao presente.
Tiago Rosa-Rosso: Quando acabei o secundário estava convencido que queria ser arquitecto, acho que na verdade não fazia a mínima ideia do que queria fazer. Depressa percebi que não gostava assim tanto de arquitectura e mudei para Cinema na Universidade Lusófona. Nunca fui grande aluno na faculdade, interessava-me muito pela técnica e pouco pela teórica. A Lusófona permitia aos seus alunos requisitar material (câmaras, luzes, microfones, gravadores, etc.) para projectos extra curriculares e acho que foi nesse processo de experimentação dos vários sectores do cinema que percebi que queria ser não realizador mas director de fotografia, mas mais uma vez estava enganado. Acabei a faculdade em 2006 e fiquei no desemprego, muitos dos meus colegas foram fazer televisão mas eu queria fazer cinema. Fiz um estágio no filme A Bela e o Paparazzo no qual fui assistente de edição onde fazia o trabalho chato de sincronizar audio com a imagem. Nessa altura comecei a ler sobre guionismo e escrevi a minha primeira curta-metragem, Peixe Azul. Quando acabei o estágio peguei no guião e convenci os meus amigos a entrar nesta aventura de fazer uma curta metragem, juntámos 700 euros para fazer o filme e só gastámos 650. A curta foi-se adaptando às nossas debilidades económicas e técnicas e o resultado está aqui. Foi ao fazer este filme que percebi que queria contar histórias e para isso tinha de aprender a ser realizador. Para aprenderes a realizar só tens uma alternativa que é fazer filmes, ver não basta, também faz parte do processo, mas o essencial é fazê-los, e foi assim que surgiu o Deus Dará.
CV: Deus Dará começa com uma citação de Brecht que marca desde logo o filme: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.” Qual foi a tua intenção ao utilizar esta metáfora?
TR: O filme partiu deste pequeno poema de Brecht. É uma coisa que me aflige de certa forma. O nosso mundo é cada vez mais individualista. Tudo o que diziam dos comunistas, que íamos ficar sem as nossas casas, trabalhar a vida toda e nunca sair da miséria acontece agora com o capitalismo. Vendem-nos a falsa ideia de que esta sociedade é igual para todos, de que se trabalhares e seguires a norma podes ter uma vida digna, mas é mentira. As condições de vida da classe baixa não são as mesmas da classe rica. Logo à partida se nasces em berço de ouro tens muito mais possibilidades de vir a ser alguém. É evidente que alguém que nasce num seio familiar onde não existe a possibilidade de pagar para frequentar uma boa escola e ter um explicador e fazer várias actividades extra curriculares, ter um bom médico de família e um dentista, e um ambiente familiar onde existe tranquilidade financeira tenha mais dificuldade de vencer na vida que o outro que tem estas possibilidades. Os filhos da classe baixa são os que futuramente vão trabalhar precariamente ou ficar no desemprego. Depois, a inexistência de um estado social leva certamente ao aumento da marginalidade. Queria contar a história deste indivíduo que vem desta classe social. E queria mostrar que esta realidade existe, que a criminalidade na maior parte dos casos tem uma explicação, que nos é difícil de entender por vezes mas que é fruto desta desigualdade social. Mas não queria cair na vitimização, nem expor esta personagem como um coitadinho que não tem outra hipótese senão ir roubar. A ideia é incomodar um pouco o espectador com esta realidade que advém do nosso individualismo.
CV: Conseguiste transmitir em 22 minutos uma ideia complexa e raramente bem compreendida: a de que a criminalidade nunca é pura e simplesmente criminalidade. A denúncia e a crítica social foram objectivos conscientes quando decidiste realizar um filme tão actual e pertinente?
TR: A minha primeira intenção é sempre fazer um filme. Neste caso havia a vontade de falar sobre este tema, não particularmente em tom de denúncia ou no sentido de elaborar uma critica social. É claro que fico contente quando o espectador consegue a partir dele questionar a sociedade onde vive.
CV: Como se deu a escolha de Ivo Vieira e a construção da sua personagem? Surpreende-te que apesar da sua conduta à margem da lei a personagem cative a simpatia do espectador?
TR: Eu e o Ivo Vieira somos amigos há muitos anos. Fomos colegas na escola Voz do Operário e partilhamos esta paixão pelo cinema. O Ivo não teve as mesmas possibilidades que eu. Não pôde ir estudar cinema para a Lusófona porque teve de ir trabalhar para uma fábrica em Great Yarmouth, na Inglaterra. Mas é um indivíduo com uma capacidade de adaptação tremenda. Quando voltou a Lisboa e o reencontrei perguntei-lhe se ele queria ser actor nesta curta. Ele foi muito prudente, disse, vamos experimentar, se estiver a resultar continuamos. E foi o que fizemos. O Ivo começou a trabalhar sobre a personagem e deu outra vida ao guião. Ele tem muito talento e é muito rigoroso. Quando filmávamos queria sempre ver os takes e experimentar novas formas de abordar a cena. Quando eu achava que já estava bom ele surpreendia-me com melhor. Em relação à simpatia que passa para o espectador agora que o filme está feito não me surpreende, mas durante as rodagens tive algumas dúvidas, mais uma vez isto deve-se ao trabalho do Ivo que consegue subtilmente fazer passar este lado humano da personagem com que o espectador empatiza.
CV: Peixe Azul e Deus Dará têm em comum a abordagem de realidades desfavorecidas e incorporam muitas cenas filmadas de noite. Explica-nos esta opção pelo realismo social e o interesse por facetas algo sombrias e menosprezadas pela sociedade.
TR: Eu cresci em Alfama e ainda moro lá. É um bairro cheio de contrastes. Tenho algum fascínio por realidades diferentes da minha. Quando fiz o Peixe Azul e passava muito tempo com o Alberto Fernandes que faz o papel do miúdo mais velho invejava aquela relação que ele tem com a rua. Ele senta-se nas escadas da igreja de São Miguel como eu me sento no sofá em minha casa, é uma ligação com a rua que eu nunca vou ter, gosto de tentar passar estas coisas para os filmes. Não sou especialmente atraído por realidades desfavorecidas mas gosto do lado cru do cinema. Gosto de filmar à noite, eu, a câmara, um micro, um actor que não é actor e transportar um pouco destas realidades para o filme.
CV: Os filmes que realizaste até agora apresentam substância para se transformarem com naturalidade em longas-metragens. Fazer curtas-metragens foi uma uma solução contingente ou uma preferência?
TR: Foi uma preferência. As curtas são um bom veículo para quem está a começar. Primeiro pelo lado económico e depois porque é um formato difícil para contar uma história. Lembro-me que a primeira montagem do Peixe Azul tinha 44 minutos, era “inaguentável”. Depois fiz uma outra montagem de 15 minutos que acabou por ser a final. Com o Deus Dará foi ao contrário o guião sugeria que o filme tivesse 15 minutos mas acabámos por acrescentar cenas e o filme ficou com 22. Mas foi sempre uma escolha. Parecia-me ser o caminho certo. Agora escrevi uma longa metragem e gostava de a fazer, estou à procura de financiamento e sinto-me mais preparado.
CV: Qual é a tua posição em relação ao modelo de financiamento do cinema em Portugal? Parece-te que a relativa independência face às lógicas de mercado resulta em maior liberdade criativa ou, pelo contrário, o curto alcance dos apoios dificulta a vida dos projectos que ficam de fora?
TR: Não ponho em causa o modelo de financiamento do cinema em Portugal. Acho imperativo que exista uma estrutura de apoio ao cinema português uma vez que não existe uma indústria cinematográfica em Portugal: somos demasiado pequenos para isso. Mas existe um cinema de autor de alto nível que a meu ver deve continuar a ser apoiado. Quanto à forma como estes subsídios são atribuídos, os montantes e para quem vão, sinceramente não posso dar a minha opinião, porque não sei como funciona. Em teoria sei quais são os critérios de avaliação, o que não sei é quais são os critérios de quem avalia e como na prática se tomam decisões em relação ao que deve ou não ser apoiado. Sei que há muitos filmes que estão na gaveta. Eu tenho um. Tenho colegas meus que têm dois ou três. Muitos se calhar nunca vão passar da gaveta. Se calhar até existem filmes que não deveriam sair da gaveta, mas quem sou eu, ou um júri, para decidir o que deve ou não ser feito. O Cinema Paraíso foi um flop de bilheteiras só teve sucesso depois de ganhar a Palma de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Nos EUA produzem-se 500 filmes por ano, 100 fazem o break even, 10 fazem lucro e são estes 10 que pagam os outros 390 que deram buraco, mas entre esses encontram-se filmes cujo contributo para o cinema é inegável.