É com um plano apertado e intimista e ao som de “Hang Me, Oh Hang Me” que se introduz Inside Llewyn Davis, um filme inspirado na cena folk nova-iorquina dos anos 60, escrito e realizado pelos irmãos Coen. Não sendo um musical, é reservado bastante espaço para a música permear o filme, porém se estão à espera de um retrato de ícones musicais embrionários do folk desenganem-se. Todo o filme é construído a partir de uma personagem central e ficcionada, Llewyn Davis (Oscar Isaac), que representa o artista a tentar (sobre)viver da sua arte na emergente cena musical de Greenwich Village. Neste caso em particular, é a vida dedicada à música que, de facto, o eleva acima da mera existência.
As personagens com uma vida árdua não são novas na filmografia dos Coen, mas ao contrário de Dude, que tolerava a sua condição, de Larry Gopnik, que enfrentava acontecimentos cruéis um atrás de outro, ou até Barton Fink, um incompreendido, Llewyn debate-se com o seu próprio talento e com incapacidade de o transformar o seu génio em ganha-pão. Assim, vai deambulando, sem morada fixa, “crashando” de sofá em sofá em casa de amigos que o acolhem e pouco preocupado com o “futuro”, em evidente contraste com Jean (Carey Mulligan), que busca um plano de vida nos subúrbios, onde um casamento e filhos não podem faltar. Acontece que Llewyn conhece bem a incerteza do dia seguinte, sabe o que é viver sem lugar a que chamar casa ou não ter dinheiro para subsistir e talvez por isso que se preocupe constantemente com a alimentação de um gato fugido da casa onde pernoitou e que ficou a seu cargo.
Perante este modo de vida, todos o acusam de ser um falhado, “o irmão idiota do Rei Midas”, um vagabundo sem destino, mas o que o filme vai revelando paradoxalmente é que as personagens em redor de Llewyn denotam uma decadência bem mais aguda: Jean, apesar da caracterização e da luminosidade no rosto inspirar pureza, carrega em si pecado e desonra quanto baste; Roland Turner (John Goodman), arquétipo do abastado de classe alta, encerra uma existência vazia, consumida em vícios e desprovida de laços afectivas; Johnny Five (Garrett Hedlund), motorista de Turner, é um poeta fracassado e desinteressado pela vida, entregue a uma profissão que apenas lhe garante sustento.
Ethan e Joel Coen conseguem mostrar ao espectador o que vai “dentro” de Llewyn, contudo um misto de más decisões e feitio difícil ajudam a que, no filme, todo um mundo frio e calculista não veja cifrões no seu talento e lhe feche as portas, fechando-o também num ciclo vicioso e precário. O filme, esse, é muito bem sucedido graças a um dos melhores argumentos que a dupla de cineastas já escreveu e, em parte considerável, ao desempenho de Oscar Isaac, melancólico e angustiado tanto quanto bem humorado, para além de musicalmente talentoso. Em seu redor pairam um conjunto de personagens secundárias muito bem desenhadas, como a de Carey Mulligan, a acidez e amargura em pessoa, a de Justin Timberlake, o músico e marido “certinho”, ou o pequeno papel de John Goodman, um homem rico, excêntrico e decadente.
“Se nunca foi nova e nunca envelhece então é uma canção folk.”
Para enriquecer o filme contribuiu também a intemporal e enternecedora banda sonora produzida por T. Bone Burnett a partir de versões de clássicos da folk, de temas tradicionais de autor anónimo e, note-se, interpretada pelos próprios actores. Por sua vez, a fotografia de Bruno Delbonnel assegura a beleza visual do filme, sempre com uma ligeira névoa bem condizente com a falta de sorte do protagonista.
Claro que se pode questionar o porquê de ser contada a história de um “perdedor” em vez de a de um músico bem sucedido. A resposta talvez seja a vontade de homenagear uma larga maioria de artistas que seguem um rumo semelhante ao de Llewyn, anónimos e desconhecidos, com grande dificuldade em vencer num mundo subjugado ao apelo comercial e ao retorno financeiro, contexto em que a diferença entre vingar ou ser esquecido pode ser ínfima.
Neste sentido há que prestar atenção ao final do filme que, sem revelar aqui demais, dá sinais de alento: uma figura que faz lembrar Bob Dylan surge a actuar logo após Davis numa noite de microfone aberto no Gaslight Café, num claro piscar de olho à explosão de popularidade que a música folk estava prestes a ter; o desfecho da situação do gato evadido leva Llewyn a recordar que, por mais atribulada e difícil, uma vida gasta a fazer o que se ama e em busca da concretização de sonhos só pode ser uma jornada incrível.
Classificação (0-10): 8
Inside Llewyn Davis | 2013 | 105 mins | Realização e argumento: Ethan Coen e Joel Coen | Elenco principal: Oscar Isaac, Carey Mulligan e John Goodman