Sedutor, imprevisível e místico, assim é Vénus de Vison, o último filme de Roman Polanski. Se a mise en scène nos faz lembrar O Deus da Carnficina, recuperando a linguagem teatral e reduzindo o espaço do filme a um único local, em Vénus de Vison a aproximação ao teatro é mais directa, uma vez que a história se passa numa sala de teatro, onde Vanda (Emmanuelle Seigner) vem para uma audição e encontra apenas o dramaturgo Thomas (Mathieu Amalric), que adaptou o romance erótico de Leopold von Sacher-Masoch’s “Venus in Furs” de 1870.
À superficie ela é a loira tola que está ali para obter o papel de Wanda, com uma atitude tão leviana quanto inocente que serve de engodo ao homem, para lhe dar o poder, para baixar a guarda e confiar. A partir do momento em que começa a interpretar a personagem, vemos uma Vanda que se vai deixando descobrir. Por entre insinuações misteriosas de Thomas, percebemos que há muito mais por detrás da sua fachada (quando Thomas refere que ela não poderia ter o texto completo, quando ela parece saber as falas de cor, apesar de dizer que leu o texto na diagonal, na mala – qual caixa de pandora – ela guarda todos os adereços de cena que vão sendo precisos). Por vezes diz as frases e comenta-as com surpresa, como se possuída por outro ser, quiçá Vénus ou Afrodite… Ao longo do tempo vai-se denunciando nas críticas sagazes e constantes ao papel da mulher como objecto sexual, ao sexismo e à sua eterna subjugação, sempre pelo subterfúgio duma pronúncia de quem mastiga uma pastilha.
Tal como o nome da peça e do filme sugerem, a Vénus anda sempre vestida de pele. O filme é explicito em associar, desde o princípio, Vanda a essa imagem de mulher fatal através do guarda roupa, quer seja num fato provocador de pele preta, numa estola de peles ou na sua pele original. O guarda roupa, os adereços e a maquilhagem ajudam-nos a distinguir uma Wanda do século dezanove da Vanda dos nossos dias. De igual modo, servem para acentuar os papéis simbólicos que cada actor representa num dado momento, fazendo entender as alternâncias das posições de poder.
A personagem feminina está sempre envolta numa aura de mistério, deixando a dúvida sobre quando é que ela não está verdadeiramente a representar? Será que em algum momento vimos a verdadeira Vanda? É esta personagem uma mulher ou uma Deusa descida à terra? Nos elementos místicos do filme é irresistível relembrar A Nona Porta, e passados catorze anos, Emmanuelle mantém o mesmo carisma e intensidade. E apesar das constantes colaborações nos filmes do marido, ela é certamente a escolha ideal para o papel. O jogo de poder entre os actores é deliciosamente inteligente e Mathieu Amalric está à altura do desafio. Com uma estatura mais pequena e débil, comparando com a presença feminina, essa característica realça quem tem na verdade o poder e quem é sempre dominado. O filme assenta numa base de diálogo constante entre os dois, mas talvez o facto de ambos já se conhecerem e de contracenaram há longos anos justifique uma cumplicidade e confiança que transparece para o público.
Filmado apenas numa sala de teatro, as mudanças de local, como o espaço da plateia, o palco e os diferentes elementos que estão no palco, são bem conjugadas e meticulosamente escolhidas para uma parte da trama. Os planos mais próximos individualizam partes do palco criando a ilusão de vermos apenas uma sala, ou então uma secretária mostrando um recanto de um quarto, criando uma tensão mais intimista na cena. Em contraponto, os grandes planos fazem-nos lembrar que se trata de um só espaço. A plateia representa grandes mudanças (sendo o local por onde as personagens entram e saem de cena, onde tudo começa e onde as regras do jogo se definem e são invertidas). O palco é onde os actores jogam na fronteira entre o que é real e o que é fingido, mas o papel de uma vida só poderá ser magnífico se a personagem tomar conta do próprio actor…
A fusão entre a realidade do teatro e do cinema é explorada também através de vários elementos técnicos: a iluminação é usada para criar diferentes atmosferas, elementos de sonoplastia, presentes no exercício de mímica que os actores fazem enquanto encenam a peça, criando o som do elemento que falta à visão (seja o tilintar de uma colher de café, ou o escrever numa folha com uma pena). E por último a música, que vai separando os vários segmentos do filme, adensando a trama, por vezes como um prenúncio de uma tempestade apoteótica.
Vénus de Vison é um filme que questiona o poder masculino/feminino ao longo de centenas de anos, deixando no ar que algo pode estar prestes a mudar. Numa realização irrepreensível de Polanski e com dois dos grandes actores franceses do nosso tempo, este é um dos filmes que certamente marcará o final de 2013.
Classificação (0-10): 8
Vénus de Vison | 2013 | 96 mins | Realização: Roman Polanski | Argumento: David Ives (peça), Roman Polanski (argumento) | Elenco principal: Emmanuelle Seigner e Mathieu Amalric