“Kung Fu, duas palavras: uma horizontal, uma vertical.”
É a partir deste epigrama que se estrutura O Grande Mestre, do aclamado realizador Wong Kar-Wai, um épico de acção inspirado na vida real do lendário mestre de Kung Fu, Ip Man, o homem que treinou Bruce Lee. Em abono da verdade, é bem mais que isso, sendo que Lee constitui uma parcela residual da história, surgindo apenas como um jovem rapaz fascinado pelas artes marciais que cedo mostra o potencial para se tornar na figura que bem conhecemos. Porém, o deslumbramento pelo Kung Fu é comum a Wong Kar-Wai, que conjuga em cada plano a inocência de uma criança com o saber de um cineasta experimentado.
Ip Man (Tony Leung), o protagonista, é apresentado antes de mais pela sua própria arte numa espectacular sequência de abertura que traça desde logo um estilo de cenas de combate distinto dos demais filmes do género, de que é exemplo o enfoque especial nos pés, enfatizando a vertente de “bailado” das artes marciais, sendo inclusivamente os confrontos muitas vezes acompanhados de música clássica. Quando não se luta, abundam os plano apertados que exploram ao máximo a emoção no rosto dos actores e enfatizam o lado dramático do filme.
Cronologicamente, as artes marciais são contextualizadas na dimensão histórica do país, numa tumultuosa era republicana que se seguiu à queda da última dinastia chinesa, um tempo marcado pelo caos e pela guerra. Esta ambiciosa obra de larga escala demorou cerca de três anos a ser filmada, rodada em paisagens lindíssimas como os mantos de neve do Nordeste da China ou os cenários de clima subtropical mais a Sul.
“Não ensino vagabundos e dançarinos. O Kung Fu não é um espectáculo.”
A citação é de Ip Man e resume bem o espírito de O Grande Mestre: não faltando emoção e autenticidade às cenas de combate (que contaram com o trabalho do coreógrafo de filmes como Matrix, Kill Bill ou O Tigre e o Dragão), Wong Kar-Wai não quis reduzir o filme ao espectáculo e ao artifício exagerado que se encontra em muitas produções do género. As artes marciais são apenas o tema, um pano de fundo sobre o qual o cineasta constrói uma teia dramática, quase meditativa, que não podia deixar de incluir uma história de amor, neste caso entre Ip Man e Gong Er (Ziyi Zhang), a descendente do mestre da escola do Norte. Este é, afinal, um filme fetiche do realizador em homenagem ao Kung Fu, uma ode às Artes Marciais que enaltece a sua nobreza de valores, a sua disciplina, humildade e generosidade.
De tanto querer abarcar, Kar-Wai não foi capaz de evitar alguma falta de conexão entre as várias dimensões do filme, sendo esse o seu ponto mais fraco: nem o conflito político, nem o enredo romântico, nem a tensão entre escolas de Kung Fu rivais são explorados com a profundidade que mereciam e a narrativa desenvolve-se por vezes demasiado à superfície.
Tal como no filme, voltemos ao epigrama para concluir. Para além do facto elementar de que em combate vence quem se mantiver de pé, a sua mensagem atravessa todo o diálogo e imagética bipolar do filme, tanto em termos geográficos como em termos conceptuais. Acentuam-se os contrastes Norte/Sul em termos políticos, de estilos de combate, de personagens principais (Ip representa o tradicionalismo, a dedicação e o sentido intemporal da sua arte e Gong Er a sede de vingança, aceitando a negação do casamento, da descendência e da transmissão do saber da sua família) e até de cenários (no Norte a neve e no Sul a chuva), sublinhando-se a ideia fatídica de que o mundo está, apesar de alguns esforços no sentido contrário, condenado à divisão e à ruptura, seja de povos e nações ou simplesmente de escolas de Kung Fu.
O Grande Mestre é uma mega produção visualmente arrebatadora criada por um dos grandes mestres vivos do cinema mundial que só desiludirá quem dele esperar um filme perfeitamente alinhado com os seus trabalhos anteriores.
Classificação (0-10): 7
O Grande Mestre | 2013 | 130 mins | Realização e argumento: Wong Kar-Wai | Elenco principal: Tony Leung, Ziyi Zhang e Jin Zhang