«12 Anos Escravo»

EstreiasJan14001

Steve McQueen está de volta à realização depois de dois murros no estômago chamados Fome e Vergonha, e não só parece ter perdido a marca de autor dos seus filmes anteriores como o impacto provocado é muito diferente. 12 Anos Escravo é uma história sobre a escravatura americana que ainda não foi contada, baseada num livro homónimo publicado em 1853. No início McQueen utiliza avanços e recuos temporais desordenados que, se não tivéssemos nenhuma informação sobre Solomon Northup, levaria a que se ordenasse a história a partir de todas as que já vimos retratadas no cinema: o escravo que tem por fim a sua libertação… Mas é precisamente o contrário, já que Northup vivia em Nova Iorque e era por direito um homem “livre”, designação traiçoeira quando depende de leis tão voláteis como a vontade de um homem moldada pelo dinheiro fácil. A história é contada de uma forma clássica, longe do estilo mais extremo anteriormente explorado por McQueen, no entanto à luz de outros retratos deste flagelo como Amistad, de Steven Spielberg, ou Beloved, de  Jonathan Demme, é evidente o cunho de McQueen na irreverência da banda sonora, na forma crua e ao mesmo tempo tocante como retrata o dia a dia dos escravos ou nos planos longos que nos fazem emergir na trama.

Apesar de ser indiscutivelmente o filme mais mainstream de McQueen ele mergulha de cabeça no tema e não mostra medo de ferir susceptibilidades. A crueldade patente no acto de subjugar uma pessoa, legitimado por leis feitas por homens, é abordada pelos mais variados prismas. Um dos mais interessantes é a agudez das suas personagens femininas brancas – as senhoras das casas – normalmente subestimadas neste tipo de filmes por não deterem poder e serem também elas subjugadas, o que não as impede se serem frias e compactuarem com os actos dos seus senhores, expresso na veleidade com que reagem ao choro de uma mãe separada do filho ou na violência física e verbal contra o alvo dos seus ciúmes.

Mas o filme vai mais além e a banalidade da escravidão é magistralmente captada pelas cenas dentro da comunidade de escravos, onde apesar de todos serem constantemente privados da sua humanidade e dignidade existe uma alienação em relação ao sofrimento alheio, como estratégia para sobreviverem numa tentativa de não reverem o seu próprio sofrimento. Cena chave é a da tentativa de enforcamento do protagonista, onde McQueen nos deixa suspensos à espera que algo aconteça, enquanto em plano de fundo crianças brincam indiferentes à situação. Esta cena marcante é filmada num plano longo intercalado entre a expressão de Solomon Northup, que estranhamente não demonstra desespero mas sim uma resignação a mais um obstáculo no seu percurso, e os seus pés, no limiar entre a vida e a morte, entre a escravidão e a liberdade, entre o homem e o animal, sempre numa fronteira que é definida por outro homem.

Este não é um filme confortável de ver nem McQueen o permitiria. A realidade foi criminosa, por isso explorar os limites do filme era também obrigatório, e as cenas de chicoteamento não eram filmadas com tanta crueza e transparência desde A Paixão de Cristo (Mel Gibson), mas essa agressividade serve o propósito do filme.

12 anos

A relação de confiança que McQueen estabelece com os actores é notória na cumplicidade existente entre todos. A escolha de Michael Fassbender é uma tradição (protagonizou os seus dois filmes anteriores) e desta vez é um produtor de algodão sem escrúpulos e conta-se que desmaiou durante a rodagem de cenas do chicoteamento tal a sua entrega. Do fabuloso elenco faz parte Chiwetel Ejiofor, que honra a história original de Solomon Northup com uma interpretação intensa sem recorrer ao sentimentalismo fácil. Quvenzhané Wallis, a menina prodígio de Bestas do Sul Selvagem, representa a filha de Solomon embora aqui o seu talento fique escondido na imensidão do restante elenco. Com um pequeno papel mas novamente num registo que fica na memória surge Paul Dano, como um mestre de obras com um  intratáveis, mas também Sarah Paulson, como a cruel senhora cujas palavras ferem como chicotadas, Brad Pitt, o cidadão canadiano humanista que não subscreve os ideais esclavagistas e Lupita Nyong’o, a jovem escrava objecto de fascínio de Edwin Epps (Fassbender).

Com uma abordagem humilde em detrimento da exaltação do herói e desprovida de moralismos panfletários, 12 Anos Escravo é ao mesmo tempo um grande exercício de cinema e uma viagem inesquecível a um tempo que agradecemos ser parte do passado.

Classificação (0-10): 8

12 Anos Escravo | 2013 | 134 mins | Realização: Steve McQueen| Argumento: John Ridley | Elenco principal: Chiwetel Ejiofor, Michael K. Williams, Michael Fassbender, Paul Dano, Lupita Nyong’o, Sarah Paulson e Brad Pitt

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