KINO 2014: Guerra Fria e Muro de Berlim através dos filmes

A temporada de festivais em 2014 começou com a décima primeira edição do KINO – Mostra de Cinema de Expressão Alemã, que esteve presente em Lisboa, Porto e Coimbra. Numa parceria do Cinema São Jorge e o Goethe-Institut, a mostra apresentou uma selecção de filmes provenientes da Alemanha, Áustria, Luxemburgo e Suíça. Da ficção ao documentário e a primeiras obras de jovens realizadores, a programação foi tão interessante como ecléctica. Um dos jovens talentos é Jan Ole Gertser, que filmou a preto e branco Oh Boy, filme que arrecadou os prémios de Melhor Filme e Melhor Realizador nos Deutscher Filmpreis 2013.

Esta edição da Mostra assinalou o 25.º aniversário da queda do Muro de Berlim com o ciclo Die Mauer no qual estiveram presentes dois filmes incontornáveis: As Vidas dos Outros de von Donnersmarck e As Asas do Desejo, de Wim Wenders. 

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No dia 29 tivemos oportunidade de ver Os Arquitectos, de Peter Kahane, um filme sobre as barreiras e constrangimentos a que somos sujeitos e as escolhas que tomamos face a elas. Tomando um grupo de arquitectos como sujeitos de análise, o filme debate inúmeros temas que ainda hoje estão na ordem do dia. David Brenner, um licenciado em arquitectura passa anos sem fazer um único projecto, depois de passar tantos anos no curso e de ter expectativas quanto à sua concretização no mercado finalmente alguns anos depois tem a sorte de se ver a coordenar um projecto para um bairro social em Berlim Oriental. Reúne os seus antigos colegas, que também estavam em trabalhos precários, e começam a esboçar o que seria a sua primeira obra. O grupo de jovens, apelidados pelo supervisor de sete samurais (talvez por travarem um batalha a favor de uma ideologia mais humana), planificam o bairro de modo a servir às pessoas e a ser um espaço agradável. Mas logo esbarram com uma agenda política demasiado presente e, como é referido, “os prédios são demonstrações do poder” e por isso não devem servir quem os habita mas sim passar uma mensagem política, denunciando assim uma sociedade que não está disposta a ter uma visão mais humana. Enquanto procura erguer um conjunto de edifícios em benefício da comunidade, Brenner tenta evitar a demolição da sua vida familiar. Os pontos de vista de Brenner e a sua esposa representam duas visões gerais perante a situação em que vivem. Ele acredita que os cidadãos devem ajudar a mudar a realidade do seu país e não desistir, enquanto ela sente-se presa e quer beneficiar de uma vida sem restrições num país que lhe ofereça novas oportunidades, o que vai criar um conflito interno. O filme é bastante datado, tanto pela qualidade da imagem como por toda a mise en scéne que grita “anos noventa”, no entanto só temos um vislumbre da barreira física do muro de Berlim, quando Brenner se tenta encontrar com uma pessoa do outro lado do muro. A cena é filmada do ponto de vista de Brenner, fazendo com que tenhamos a real perspectiva da distância e do impossível que seria esse encontro, deixando assim no ar a sensação de prisão consentida em que se vivia na antiga RDA.

cyclingtheframe

No dia seguinte foi a vez de assistirmos à sessão dupla dedicada ao projecto de Cynthia Beatt, que consiste em dois filmes nos quais Tilda Swinton viaja de bicicleta junto ao muro de Berlim, ambos entre o documentário e o art-film. O primeiro filme, Cycling The Frame, foi realizado em 1988 e aborda o muro e o seu simbolismo de forma essencialmente contemplativa e pueril, ainda que sempre em tom crítico. Swinton parece uma criança cuja inocência a impede de compreender a razão da existência daquele muro. Ela segue, quilómetro após quilómetro, considerando-se parte da bicicleta e que é mais levada por ela do que o contrário, ora admirando a beleza da natureza, ora declamando poesia sobre o muro. “Será que um dia cairá”, pergunta, “se até as árvores caem e são mais fortes?”. Mantendo o registo tecnicamente cru ao longo do percurso (apenas o som da narração é adicionado a posteriori), a bicicleta de Swinton conduz-nos até ao centro de Berlim, mais concretamente ao portão de Brandemburgo, onde a fronteira que muro impõe é mais visível. 

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O segundo filme, The Invisible Frame, começa precisamente no lugar onde o primeiro termina, porém 21 anos depois, já sem muro à vista. O percurso agora faz-se em tom mais pesado, igualmente contemplativo, ao longo do que Swinton chama de “quilómetros de vergonha debaixo do chão”, agora sob a forma de vestígios arqueológicos. O filme procura demonstra que o muro, agora fantasma, é mais visível hoje do que quando estava de pé, simplesmente porque agora se pode avistar aquilo que escondia e esteve sempre ali tão perto. Acompanhada da leitura de Alone in Berlin, de Hans Fallada, faz-se, como no primeiro filme, uma livre exploração do espaço potenciada pela deslocação em bicicleta, sempre com forte proximidade com os lugares e a natureza, confundindo-se com ela e desafiando a existência de barreiras. Este ideia é particularmente vincada em algumas cenas marcantes, nas quais Tilda cruza várias vezes seguidas com a bicicleta a fronteira agora inexistente, marcada no chão por pequenas pedras embutidas. Em suma, trata-se de um projecto cinematográfico que defende a existência de um mundo aberto e reprova a existência de barreiras geográficas como a que o muro de Berlim impôs, comparando-as à mitológica serpente marinha: quando se corta uma cabeça e crescem outras. Esta metáfora é, aliás, uma clara alusão ao muro de Gaza e não é por acaso que o filme é dedicado à Palestina.

Two Lives

A sessão de encerramento da Mostra manteve a toada política em torno da guerra fria e da divisão da Alemanha com o filme Duas Vidas, de Georg Maas. Este foi o candidato alemão ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e retrata o percurso de Katrine Evensen, cujo passado a conduziu a uma vida dupla graças a um segredo que remonta à Stasi e ao regime nazi. Com distribuição assegurada para Portugal, a estreia deste filme deverá ter lugar ainda este ano e a crítica completa será publicada brevemente.

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