“A sexualidade é a força mais poderosa do ser humano.”
Ninfomaníaca é uma longa-metragem de Lars von Trier sobre o percurso de uma mulher, sobretudo o sexual, segmentada em duas partes que completam um total de quatro horas (pelo menos nesta versão censurada que o realizador não assinou mas aprovou) que aqui se optou por analisar como um todo. A ninfomaníaca em questão é Joe (Charlotte Gainsbourg), que no início do filme é encontrada estendida no chão por Seligman (Stellan Skarsgård), visivelmente maltratada. Seligman dá-lhe abrigo, sara-lhe as feridas e, uma vez Joe recomposta, será confidente e ouvinte da sua trajectória, de forma a compreender o que a levou a acabar naquele estado.
Desde os flashbacks da infância com os pais, que dão conta da sua apetência sensorial acima da média, à descoberta do prazer na infância e à adolescência (período em que é interpretada por Stacy Martin), a narrativa, cronologicamente linear, relata a vida sexual auto-destrutiva de Joe estruturada em capítulos (recurso habitual na filmografia do realizador dinamarquês), intercalada com a longa conversa entre Joe e Seligman. Este diálogo enquadra e alicerça todo o filme, tanto em termos formais como no plano simbólico, uma vez que se tratam de perspectivas antagónicas: ela é corpo, prazer e experiência, ele é mente, reflexão e inexperiência, além de ser o primeiro homem com quem Joe se consegue relacionar de forma não sexual.
Esta polarização das personagens permite a Von Trier legitimar a construção de metáforas improvavelmente intelectuais em torno do sexo: o paralelo com a pesca, com Valéria Messalina (famosa prostituta da Babilónia), com a divisão entre a igreja ocidental e oriental ou a correspondência de determinadas experiências com ideias presentes na obra de Bach ou Wagner e com conceitos matemáticos (como a sequência de Finonacci) são apenas algumas. De referir também a proximidade com a natureza, subjacente ao instinto sexual, manifesta na inclusão de imagens de arquivo da fauna e na carga emocional e sensorial atribuída à flora em momento particulares do enredo.
“O amor é sexo com a adição de ciúme.”
Embora a atmosfera do filme seja predominantemente negra e dramática, há diversos rasgos de comédia e sarcasmo, cuja expressão máxima é a cena em que participa Uma Thurman. A própria perda da virgindade de Joe constitui uma piada virada para dentro: solicitando essa tarefa a Jerome (Shia Lebouef), este não se nega e fá-lo em precisamente oito concisas “investidas” – o mesmo número de capítulos do filme e também um dos algarismos da sequência de Finonacci.
Ninfomaníaca recupera em parte o espírito mais radical e punk do projecto Dogma 95, principalmente na movimentação manual da câmara e nos planos ligeiramente trémulos que vão de encontro à acção e não o contrário, sendo por isso mais comparável a Os Idiotas ou Dogville do que às mais recentes criações do realizador. Por seu turno, a banda sonora apresenta alguns apontamentos interessantes, particularmente bem adequados às cenas, sobretudo no final de cada volume: no primeiro é usada a textura abrasiva de Rammstein, no segundo uma versão de “Hey Joe”, interpretada pela própria Gainsbourg.
Depois de Anticristo e Melancolia, a terceira colaboração com von Trier é aquela em que Charlotte Gainsbourg mostra um maior domínio da personagem, construindo um figura que é bem mais que um simples receptáculo das ideias do realizador. Ela é um ser intensamente vivo e pulsante que apenas carece de capacidade analítica perante aquilo que faz ou porque o faz. Aliás, Joe considera-se uma má pessoa, mas o filme desenvolve-se de forma a não propiciar no espectador esse tipo de julgamento.
De assinalar algumas imperfeições de continuidade, como os olhos azuis de Joe em criança passarem a castanhos na vida adulta ou o envelhecimento abrupto da personagem (em três anos) quando deixa de ser interpretada por Martin e passa a ser encarnada por Gainsbourg, transição que não é devidamente acompanhada no caso de Jerome.
Apesar da nudez incontornável, o filme nunca se pode considerar erótico ou pornográfico, e dado o seu objecto é interessante que seja mais explícita e chocante a forma como se discute a sexualidade do que as imagens que a representam. Uma vez mais, o cineasta volta a dar o principal destaque às personagens femininas e neste filme coloca uma importante questão de género: que diferentes consequências teria uma vida tão dada ao desfrute do prazer carnal se, em vez de mulher, Joe fosse um homem?
Admitindo que o tema é aproveitado para explorar os tão apetecíveis terrenos do politicamente incorrecto, acima de tudo esta é uma abordagem séria, descomplexada e muito pouco glamourosa sobre o mistério e a natureza do apetite sexual. Será a grande obra de Lars von Trier?
Classificação (0-10): 9
Ninfomaníaca – Vol.1 e 2 | 2013 | 122 mins e 123 mins | Realização e Argumento: Lars Von Trier | Elenco principal: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgård e Stacy Martin
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