Vampiros, bruxas, paixão, vingança e sangue, muito sangue. A 34ª edição o Fantasporto trouxe à invicta tudo isto e muito mais, arrancando com a projecção de Vampire Academy, filme de adolescentes aprendizes de vampiro realizado por Mark Waters que não envaidece propriamente o género. Em destaque esteve também uma homenagem especial a Victor Fleming, concretizada na exibição das cópias restaurada dos clássicos E Tudo o Vento Levou e O Feiticeiro de Oz.
Mesmo tratando-se de um festival por excelência dedicado ao cinema fantástico, na programação deste encontraram-se espelhados múltiplos temas universais, tangíveis e pertinentes para a espécie humana. The Human Race, uma das mais inventivas propostas deste ano, coloca misteriosamente um grupo de pessoas num recinto fechado, obrigando-as a lutar pela sua sobrevivência ao estilo de Battle Royale ou Os Jogos da Fome. Desta vez o método para escapar à morte é correr incessantemente, obedecendo a regras cuja transgressão é fatal. Num filme onde as ideias maduras compensam as limitações orçamentais, a brutalidade e a originalidade caminham a par e passo, sendo de destacar as demoradas sequências de diálogo gestual entre dois participantes, que levam o espectador em plenas faculdades comunicativas a sentir por momentos a exclusão que para um surdo-mudo é constante. E se este é um tópico pouco abordado no cinema, que dizer quando a protagonista é precisamente surda-muda?
Em Savaged é precisamente esse o caso: num contexto em que uma espécie de milícia nacionalista persegue e extermina indígenas algures no Novo México, uma jovem raptada e abusada pelo grupo é possuída pelo espírito de um ancião Apache que procura retaliação. Recorrendo abundantemente a efeitos muito pouco especiais, os planos e as interpretações são (pelas piores razões) bem mais arrepiantes que as próprias cenas e o melhor que o filme consegue provocar são algumas gargalhadas.
Mantendo o ambiente de thriller de terror onde os fantasmas regressam ao mundo dos vivos, Haunter, a mais recente obra de Vincenzo Natali (vencedor do Grande Prémio Fantasporto por duas vezes), demonstra como este tema pode ser bem trabalhado a nível de argumento, actores e cenografia sem cair em clichés. Um verdadeiro símbolo do Fantasporto.
No capítulo do sobrenatural destacamos mais dois filmes, estes falados em castelhano.
O primeiro, Bruxas e outras Loucas, do realizador Álex de la Iglesia, é uma comédia de costumes tão esquizofrénicos como assertivos. Provocador, frenético e colorido, venceu o prémio para os melhores efeitos visuais e do prémio do público. O segundo, La Casa del Fin de Los Tiempos, é a primeira longa-metragem do realizador Alejandro Hidalgo e inaugura o género de terror na Venezuela. Ancorado nas velhas histórias de casas assombradas, os vultos que passeiam pelos corredores são explicados através de uma história que remonta à maçonaria e ao início dos tempos. Com uma fotografia cuidada e um argumento interessante, a caracterização e as interpretações pouco credíveis revelam-se pontos fracos.
O melhor exemplar de animação deste ano, inclusivamente foi considerado como o melhor argumento na secção Cinema Fantástico, foi The Fake, produção sul-coreana em estilo clássico cuja teia dramática constituiu uma dura crítica à religião organizada (importa lembrar que neste país existe um dos maiores movimentos evangélicos do mundo). Numa aldeia prestes a ser vítima de interesses empresariais que usam a fé dos habitantes para os manipular e extorquir, estabelece-se um interessante paradoxo quando o homem à primeira vista mais moralmente reprovável parece ser único capaz de vislumbrar a corrupção que se esconde por detrás da ilusão. Complexa e difícil abordagem animada sobre a dificuldade do Homem em viver desprovido de um desígnio superior que dê sentido à existência.
Love Eternal, de Conor Barry, desenvolve-se no limbo entre a vida e a morte, onde as pessoas são forçadas a enfrentar a finitude, que pode ao mesmo tempo tornar-se paralisante ou entranhar-se ao ponto de vivermos à sua imagem. Poema visual que exalta os elementos naturais, Love Eternal quebra os limites da religião ao lembrar que acima do mundo terreno não há meramente um céu azul divino, mas todo um firmamento repleto de estrelas e galáxias, sendo a Terra apenas um pequeno ponto neste ecossistema infinito. Os actores amplificam o criativo e inteligente argumento de uma das maiores surpresas do festival.
Chupa-chupas, assassínios encomendados e vestidos pop convergem em Violet & Daisy, que dispara 88 minutos de bom entretenimento apoiados na dupla de adolescentes a la Thelma e Louise, incluindo uma das derradeiras interpretações de Gandolfini que acrescenta uma faceta dramática e humana à inocência e cores garridas da conceito central.
A jornada de vingança inspirada no universo de fábulas infantis de Big Bad Wolves surgia à partida como um dos favoritos deste ano graças aos elogios que recebeu de Quentin Tarantino. Acabou por levar para casa o prémio de melhor realização e melhor actor na secção Cinema Fantástico. Com efeito, desde a magnífica construção de personagens e de diálogo, recheado de humor mordaz e inteligente, à realização descomprometida, marcada pela liberdade de movimentos de câmara, por zooms lentos que fazem a analogia com o ritmo a que se descortina a narrativa e por um enorme sentido geométrico nos enquadramentos, o trabalho de Keshales e Papushado é digno de um diploma na universidade de Tarantino.
Love Me, vencedor do Prémio Especial do Júri, do melhor argumento da Semana dos Realizadores e do Prémio da Crítica, é um romance dramático improvável. Um grupo excursionista de turcos atrevidos ruma a Kiev em busca de mulheres “disponíveis”. Mas nestas paisagens gélidas os corações parecem incapazes de aquecer e conciliar a ilusão do amor com as suas vidas paralelas. Interpretações densas e uma direcção artística imaculada fazem deste filme um belo exemplar do cinema do Leste Europeu.
A reportagem termina com Why Don’t You Play in Hell? (considerado o melhor filme na secção Orient Express) por se tratar de uma autêntica ode trash à paixão pelo cinema. Com uma montagem e banda sonora frenéticas que assemelham o projecto a uma animação ou bloco publicitário, segue-se a odisseia descontrolada de uma equipa de filmagem amadora, auto-intitulada de “Fuck Bombers”, e a sua tentativa de realizar uma autêntica obra prima, sob a inspiração do “Deus do Cinema”. Repleto de referências cinéfilas, como o banho de sangue de The Shinning, a sala de projecção em película de Cinema Paraíso, a lenda de Bruce Lee ou Kill Bill, aponta o dedo de forma divertida a várias decadências, desde a rodagem em película à indústria cinematográfica, conquistando gargalhadas e sorrisos no meio da carnificina graças à homenagem pueril que presta à arte de fazer filmes.
Terminou assim em beleza esta edição do Fantasporto, mais uma viagem pela estrada amarela para repetir no próximo ano de 27 de Fevereiro a 7 de Março, quando se comemoram os 35 anos do certame.