“Your girl is gonna be a star. That’s the value and you… You own the product.”
Raramente começo uma crítica a um filme com uma citação do mesmo, em primeiro lugar porque não gosto propriamente de o fazer e em segundo porque tenho sérias dúvidas acerca do verdadeiro poder das citações. Apesar disso, decidi invocar este conjunto de pequenas frases como exemplo entre os inúmeros existentes nesta longa metragem. Exemplo da “plastificação” do ser humano, do animal racional como um objeto (apenas um produto).
A partir daqui haverá uma clara deficiência do eruditismo próprio de artigos semelhantes, pois intelectualizações vagas seriam inúteis na análise desta obra, de tamanha crueza.
Imaginem entrar num mundo que não é tanto um mundo como uma era. Uma era de cadillacs cor-de-rosa, camisas florida com enormes golas, sapatos de salto de plataforma e cocaína como o alimento dos poderosos. Esta é, como podem já ter adivinhado, a década de 1970. Poderia fazer uma grande dissertação acerca do que significou este período no decorrer da história das sociedades, mas não tenho tempo, nem espaço, nem disposição para o fazer. Antes prefiro focar-me na minha área de eleição, o negócio das imagens em movimento.
De facto, a década de 70 continuou o grande boom da arte pop iniciada na década anterior por artistas plásticos como Andy Warhol e bandas como The Velvet Underground ou Pink Floyd. No cinema, assistimos ao nascimento do blaxploitation e, mais importante ainda, à completa redefinição daquele que é talvez o filho bastardo da sétima arte, o cinema pornográfico. Nesta década, indivíduos de bigodes finos e patilhas tinham a pretensão de elevar este género a um estatuto de arte.
Mas vamos então passar a esta pelicula propriamente dita. Trata-se da biografia, parcial, de Linda Lovelace, a mais conhecida atriz pornográfica da sua época, talvez a mais conhecida de sempre. Isto apesar da sua experiência na indústria ter sido de apenas 16 dias. Filha de pais conservadores, simpática e irresistivelmente inocente, tinha todas as características da girl next door. Será esta aparência que a levará a entrar numa espiral de violência e abuso, brilhantemente captada na lente. A jovem conhece um homem, mais velho, experiente em áreas que ela ignora completamente. Este homem é Chuck Traynor, que virá a ser o seu marido. Dono de negócios relacionados com a vida noturna, sempre obscuros, conhecedor do negócio da exploração, usa o imenso poder emocional que exerce em Linda para a levar a fazer um filme pornográfico e até a prostituir-se.
O nome do dito filme, que será o único feita por Linda, é Garganta Funda, titulo relacionado com uma excecional “habilidade” da rapariga. O sucesso da película será tão grande que levará, pela primeira vez, o cinema pornográfico aos tops nacionais e internacionais.
Uma das razões que me marcaram e, em última estância, me levaram a escrever sobre um filme que, por preconceito, quase cheguei a não ver, foi a incrível profundidade psicológica de algumas das personagens, principalmente das principais. A exceção são as personagens ligadas com a industria porno – produtores, realizadores e os próprios atores – que são retratadas de forma superficial, frontais nas suas abordagens e incrivelmente sinceros, atuando assim como uma espécie de pano de fundo vivo, representando todo um espaço temporal e psicológico de ação.
A personagem de Linda Lovelace apresenta uma dualidade óbvia na medida em que duas facetas são demonstradas no ecrã, por um lado, a Linda Lovelace, personagem fictícia, conhecida do público. Perguntam-lhe qual a sensação de ser a cara da revolução sexual mas o que sabemos é que ela é o extremo oposto: a Linda, pessoa, não é a cara da Emancipação Sexual da Mulher mas sim uma pequena jovem da Florida, conservadora, de sardas, abusada e humilhada, respeitada apenas como produto. A escolha de Amanda Seyfried é perfeita para o objetivo principal do filme, não só fisicamente mas, principalmente, pelas capacidades dramáticas subvalorizadas da jovem atriz.
Chuck Traynor foi uma personagem que me intrigou enquanto assistia à projeção porque apresenta, também ele, uma dualidade paradoxal. O homem controlador, obcecado pelo dinheiro e explorador, a imagem óbvia que todos reparam mas, com um olhar atento, é possível desenterrar algo mais profundo. O sentimento de perda é para ele incontrolável, o ciúme, que seria algo impensável em alguém que “vende” a própria mulher, é ténue mas que existe e com ele todo o envolvimento psicológico que consegue criar. O trabalho de construção (e desconstrução) da personagem foi feito de uma forma muito competente por Peter Sarsgaard.
Rob Epstein, que não é estranho na realização de filmes biográficos (como demonstrou em Uivo), faz aqui um trabalho de direção de cenas que não será brilhante mas mostra bom senso na escolha de planos. Escrevo bom senso com a total consciência de que se parece mais com uma afirmação de condescendência do que com um elogio, mas tenham em conta que este é um filme que poderia cair facilmente na categoria de Filth Pic se não fosse filmado desta maneira, e por essa razão é de louvar.
Para terminar, dizer que esta é uma reprodução bem conseguida de uma vida enigmática e obscura e que merece ser vista pela lucidez demonstrada na abordagem ao problema. Não contém provavelmente os artifícios cinematográficos da preferência da maioria dos cinéfilos, mas não necessita porque predomina o teor natural e consciente.
Classificação (0-10): 8
Lovelace | 2013 | 93 mins | Realização: Rob Epstein e Jeffrey Friedman | Argumento: Andy Bellin | Elenco principal: Amanda Seyfried, Peter Saarsgard e Sharon Stone