Entre centenas ou milhares de produções lançadas todos os anos é preciso ser paciente até encontrar um exemplar que rompa com o marasmo e se mostre capaz de inquietar os sentidos e o pensamento. Esse é, felizmente, o caso de O Congresso, adaptado muito livremente por Ari Folman a partir das ideias centrais do livro “O Congresso Futurológico”, de Stanisław Lem.
Trata-se de um projecto híbrido entre a animação e a imagem real, difícil de catalogar num só género cinematográfico, que pode ser analisado em duas partes que correspondem a duas revoluções tecnológicas que ameaçam mudar por completo a forma de fazer cinema, e não só.
Na primeira parte, em imagem real, Folman retrata uma actriz (Robin Wright) de meia idade em fase descendente da carreira que é convidada a cristalizar a sua aparência, todos os seus movimentos e expressões através da sua digitalização. Para tal será convencida pelo seu agente (tocante interpretação de Harvey Keitel) a assinar um contracto no qual aceita abdicar em absoluto da representação, eclipsando-se do mundo mediático e cedendo os direitos da sua imagem para a criação indiscriminada de filmes ou acções publicitárias.

Este é o mote da narrativa e o primeiro statement do realizador, que critica a progressiva mercantilização da cultura, bem como a apropriação e instrumentalização dos artistas (quais papagaios de papel cujo voo criativo está constrangido pelo fio que os orienta), com um ataque feroz à indústria cinematográfica e em particular às produtoras de Hollywood – é óbvia a alusão à Paramount, aqui denominada Miramount. Convém lembrar que a técnica da digitalização de actores é hoje prática comum no cinema (pensemos no exemplo de Avatar), sendo por isso intencional o exercício de cruzamento entre o real e o ficcional ao utilizar a personagem Robin Wright interpretada por… Robin Wright (que representa simbólica e convincentemente toda a classe dos actores), o que dá ao filme, nesta primeira fase, um tom de documentário.
Inicia-se aqui um progressivo descartar da mão-de-obra humana, dos actores no processo de criação cinematográfica: não apenas os intérpretes mas também os directores de fotografia, os argumentistas e até os próprios animadores digitais – algo que sucedeu em quase todos sectores de actividade económica à medida que o avanço tecnológico o foi permitindo.

Na segunda parte, 20 anos depois, reconhecem-se mais as ideias de Stanislaw Lem. Com o objectivo de renovar o seu contracto, Wright visita uma “área animada restrita” (uma espécie de fusão alucinogéna entre O Submarino Amarelo e os Looney Tunes) onde terá lugar um “congresso futurológico” no qual uma figura que alude a Steve Jobs apresentará uma revolucionária tecnologia, o derradeiro método para ser eternamente jovem e “escapar” ao inescapável: a mortalidade. Trata-se de um tempo em que o capitalismo corrompeu até as raízes da consciência humana e transformou a actividade cinematográfica numa forma de narcoentretenimento. Através do consumo de químicos torna-se possível viver em alienação máxima e em delírio animado, ser quem se quiser, como se quiser. É o fim do ego, na medida em que os seus desejos passam a ser alimentados em doses infinitas.
Nesta distopia futurista, Ari Folman desenvolve uma construção complexa mas deixa sempre bem identificáveis os pontos chave que pretende atingir. O cineasta não está apenas revoltado com a indústria cinematográfica, mas com a sociedade mercantil e de profunda alienação em geral, deixando ainda um conjunto de questões no ar, como o conceito de propriedade intelectual, ou se mais do que a utilização do digital no cinema estaremos a caminhar para a digitalização da vida em geral.

Desde a coexistência no ecrã de imagem real com figuras animadas (utilizada por exemplo em Mary Poppins ou Quem Tramou Roger Rabbit?), à construção artificial de realidade (ideia explorada em Matrix ou A Origem), passando pela abordagem surrealista à submissão do actor perante a indústria (encontrada em Holy Motors), O Congresso reúne elementos e abordagens que não sendo virgens no grande ecrã surgem aqui numa combinação inovadora. Com efeito, só mesmo o factor inovação e a utilização de animação em contextos improváveis são comuns ao infinitamente mais sóbrio Valsa Com Bashir, filme anterior de Folman, um animadoc sobre a invasão do Líbano em 1982.
“Os filmes estão ultrapassados, são apenas resquícios do milénio passado”
Neste paradigma em que cada um pode ser quem quiser (desde Jesus Cristo a Michael Jackson, de Frida Kahlo a personagem de western), todas as figuras surgem com referência ao passado, real ou imaginado, dado que nada mais está a ser construído, histórica ou culturalmente falando. Coloca-se então a questão: terá cessado capacidade e o ímpeto da criação humana?
Folman responde fazendo desta overdose sensorial, profundamente pessimista acerca do futuro do cinema e da própria existência humana, um dos recente objectos fílmicos que dá mais esperança à vitalidade e reinvenção da Sétima Arte.
Classificação (0-10): 9
O Congresso | 2013 | 122 mins | Realização e argumento: Ari Folman | Elenco principal: Robin Wright, Harvey Keitel e Jon Hamm