A obra e o homem são inseparáveis, o homem é a obra e a obra a extensão inerente do homem. Quando falamos de Federico Fellini, podemos dividir a obra em dois parâmetros, que são, nada mais, nada menos do que duas perspetivas de visão do próprio Fellini: por um lado temos os filmes que espelham a realidade material e humana como esta é vista pela própria retina do realizador e depois transformada pela lente precisa e focada; por outro lado temos aqueles filmes que espelham a própria realidade interior do cineasta, que se procura expressar sem saber, todavia, o que é afinal o seu interior.
Do processo criativo que passa pela imersão do cineasta no mundo externo e a sua interpretação artística, muitas vezes exagerada, temos como grande exemplo o clássico Amarcord, um relato de uma povoação junto ao mar e dos seus habitantes. Este é um filme que conta, narra com um toque mágico, quase infantil. O humor que aparenta inocência à superfície de uma sagacidade tremenda torna-se quase uma marca distinta. Embora o próprio realizador tenha afirmado em várias ocasiões que não pretendia com a obra fazer uma autobiografia, nem sequer captar um momento específico do seu processo de crescimento em sociedade, parece óbvio que uma onda de nostalgia atingiu Fellini ao fazer o filme, como se ele próprio nos contasse uma história daquele lugar e daquela gente, recordando as brincadeiras e as paisagens. Sentimo-nos, aliás, verdadeiras personagens ocultas, sempre presentes, que apenas observam um sem fim de espaços humanos e naturais. Nenhuma das personagens toma a posição de principal, todas elas são indispensáveis e o filme seria nada se uma delas faltasse, como uma peça de um puzzle. É, de resto, quem observa que tem o mais importante encargo. Torna-se obrigatório o exercício crítico, nem que seja para afirmar apenas: Bello!
Uma sensação semelhante acontece com Roma, em que Fellini realiza uma espécie de reflexão filosófica, critica, apaixonada, a uma cidade. O humor de sátira social e comportamental, as transições desconexas entre segmentos e personagens fazem com que toda a peça caia numa espécie de um surrealismo cuidado, bem ao modo e estilo de Amarcord. Vendo os dois filmes um a seguir ao outro, não custa nada acreditar que os dois distem apenas um ano de diferença (1972 e 1973), sendo até possível delimitar uma época muito particular da carreira do artista.
Dizem que os humanos sonham a preto e branco. Pode dizer-se que Fellini realiza sonhos a preto e branco com uma câmara. Torna-se quase arrepiante o envolvimento pessoal, quase anímico, com as suas peças de puro carácter psicanalítico, de análise de si próprio. A luz incide nas personagens em 8 ½ e em La Dolce Vita e parece que entramos num mundo supra-material. É um convite para que entremos na mente do próprio artista, tal como as linhas imprecisas que compõem os quadros de Van Gogh e lhe relatam a loucura. Percebemos o que realmente separa o cinema de autor do cinema regular, obrigado a obedecer a normas e a regulamentos.
Permanece na memória de todos aqueles que vejam, cinéfilos ou não, a primeira cena de 8 ½, o som penetrante de uma respiração ofegante, carregada, o sentimento de claustrofobia, a multidão de gente dentro de máquinas automóveis, sufocados pela própria existência. E sentimo-nos perdidos, e é bom que nos sintamos perdidos num filme…
E a mulher como ser misterioso, bela, mas com o ar melancólico de quem não sabe que é bela, e os olhos encobertos pelo fumo de cigarros. La Dolce Vita e La Città delle Donne são perfeitos exemplos deste estudo da mulher como criatura paradoxal. Ambos se centram num único homem, interpretado por Marcello Mastroianni, brilhante ator que, por vezes nos parece ser o próprio Fellini na tela, por detrás de uns óculos escuros, escondendo uns olhos cínicos mas sonhadores que olham sempre para cima, com um sorriso sarcástico. Este homem, muito apesar de parecer controlar as mulheres que encontra, no subconsciente acaba por ser dominado por elas, centrando-se na figura feminina toda a temática amor-domínio.
Apenas para terminar, é importante fazer um paralelismo importante, uma metáfora já muito utilizada, mas poucas vezes justificada para além da própria beleza da expressão:
Toda a obra de Fellini é como um grande poema escrito com imagens em movimento.
Os filmes são poemas, sim, mas a explicação para este paralelismo quase inconsciente não está na beleza das palavras proferidas ou nas imagens que nos correm à frente dos olhos, mas sim no estudo pormenorizado da condição humana, do ridículo, e tudo isto mostrado de forma bela, com humor, humor acomodado, numa certa filosofia de carpe diem particularizada. É tudo muito profundo, com o sentido subjetivo e extra corporal, que nos aproxima do criador, do pensamento inicial, como o poema cru que conta sem narrar, numa partilha egoísta: é isto o poema da câmara de Federico Fellini.