«O Homem Duplicado», mistério da dualidade mental

O Homem Duplicado

O Homem Duplicado

Palavras escritas num papel carregam muitas vezes sentidos ambíguos. Por esta razão, o exercício da leitura torna-se mais como um exercício mental, de pensamento imaginativo. Esta falta de exercício mental torna-se, por vezes, profícuo no cinema, prática vista como muito mais passiva. No entanto, a capacidade de explorar a matriz racional e testar o poder de associação que muitas vezes se torna obsessivo é constante em O Homem Duplicado. Muita da atração por este tipo de filmes prende-se com a teia intrincada de fenómenos subconscientes associados ao bizarro ou ao misterioso com conotações de desvios psicológicos. Tal como a aranha, símbolo alegórico central de toda a narrativa.

Adam Bell (Jake Gyllenhall) é um solitário professor de História de universidade. As primeiras palavras que ouvimos deste homem, logo a seguir a uma introdução que é uma das mais enigmáticas e mais bem construídas  desde há muito tempo, definem um governo totalitário. Bell vai proferindo, de forma maquinal, que os antigos romanos controlavam o povo com pão e circo. Estas palavras parecem estranhas, proferidas por um homem que se nos afigura já um ser oprimido. Nesta passagem, que se repetirá periodicamente ao longo do filme, notamos distintamente a marca da pena de Saramago, também ele um grande opositor dos regimes repressivos ao longo da história. Este escritor enigmático, dono de um estilo muito particular, criou personagens alienadas que eram, apesar de tudo, produtos de um tecido social complexo. E é esse, também, um dos principais paralelismos desta história.

Vemos Adam Bell a habitar um pequeno apartamento, escuro, de ambiente pesado e, gradualmente, parece que se afunda cada vez mais numa depressão de que não se conhece a origem, estado psicológico que nos inquieta. Mantém relações de um carácter puramente físico, agressivo, distante com uma mulher, Mary (Melánie Arnent), que parece executar este papel de amante carnal com um certo estoicismo sacrificado. Em conversa com um colega de trabalho, é-lhe recomendado que veja um filme. Ele acaba por aceitar o conselho e aluga o filme que vê com um certo desinteresse. No entanto, repara que um dos figurantes se parece com ele. Obcecado com esta descoberta, Bell começa uma intensa investigação para tentar descobrir a identidade deste homem. Acaba por encontrar o perfil do homem numa agência de atores. É conhecido por Anthony St. Claire, também interpretado por Gyllenhall, e é a imagem refletida de Adam.

Eventualmente acaba por entrar em contacto com este homem. A partir deste momento, entra em cena a personagem de Anthony e é-nos aberta a porta para a sua vida. Vive num apartamento luxuoso, moderno com uma mulher bonita, que se encontra grávida, chamada Helen (Sarah Gadon). Ela vai ser uma das peças de ligação deste puzzle. O clima de tensão começa a adensar-se aquando do primeiro contacto entre as duas personagens e, a partir deste encontro, cria-se um clima de desconfiança e de estranheza que vai guiar o decorrer da ação.

Jake Gyllenhall apresenta-se, definitivamente, como um dos atores a ter em conta desta nova geração. O nível de entrega física e psicológica é notável, conseguindo um desprendimento pessoal que não fica atrás de nenhuma performance de Sean Penn, por exemplo. A realização, por parte de Dennis Villeneuve, é claramente uma das mais-valias nesta adaptação do livro de um autor extremamente difícil de transpor para o cinema. A escolha de ambientes escuros, de aspeto pesado, como que sujos de pó, permitem um maior envolvimento dos espetadores e o uso de símbolos constantes obriga-nos a uma atenção especial aos pormenores.

Sem dúvida um filme que tem de ser discutido pelo simples facto de não apresentar uma conclusão que permita atar todas as pontas soltas. Desta forma, O Homem Duplicado apresenta-se aberto a várias teorias que explicam o verdadeiro objetivo do cineasta. Assemelha-se muito ao clássico Vertigo, de Hitchcock, mas dá um passo para lá do thriller psicológico e do neo-noir, demonstrando uma faceta muito mais fantasista. Posto isto, é de pensar que a história tinha apenas a ganhar se a ação fosse alargada e houvessem mais momentos de confronto entre as duas personagens principais, talvez com uma subida gradual de tom dramático.

Classificação (0-10): 9

O Homem Duplicado | 2013 | 90 mins | Realização:  Dennis Villeneuve | Argumento: Javier  Gullón, baseado no romance de José Saramago | Elenco principal: Jake Gyllenhall, Mélanie Laurent, Sarah Gadon    

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