Vittorio De Sica foi um dos realizadores de meados do século XX responsável por trazer para as telas de cinema uma perspetiva e uma abordagem nunca antes vistas. O neorrealismo, assim denominado de uma forma que induz em erro uma vez que nunca antes o cinema, especialmente o cinema europeu muito restringido financeira e tecnicamente, abordara as temáticas de uma forma tão crua e despida de moralismos. Por esta altura, a Europa passava por um período extremamente problemático, pois a uma crise económica juntava-se uma crise de identidade cultural e política derivada da II Grande Guerra que assolara o continente. Depois das bombas, do massacre sanguinário e da queda dos tiranos que causaram tais atrocidades, restavam apenas escombros fumegantes do que tinha sido uma grande civilização.
Esta situação traduziu-se numa população abúlica, devastada pela miséria e pela perda da dignidade. Embora a sua situação não se tivesse alterado muito economicamente quando comparada com o período que antecedera a guerra, a esta miséria financeira havia a acrescentar a devastação causada na maioria das famílias e a expiação de todo um povo inculto nas perversidades da política.
Assim, um grupo de artistas da sétima arte italiana, que havia testemunhado os horrores da guerra e os efeitos desta no povo italiano, outrora tão grandioso, desejavam levar para a grande tela a luta titânica desta gente esquecida pela história, imortalizando-os em arte. Vittorio De Sica foi, juntamente com Rosselini, o maior mestre desta transcrição do real cru para as salas de cinema, utilizando cenários e atores genuínos para conferir um realismo ainda maior, aumentando assim, também, o envolvimento com o público.
Embora estivesse envolvido desde muito cedo com o cinema enquanto ator e começasse a realizar filmes menos conhecidos do público em 1940, foi com o magistral Engraxador que atingiu fama internacional, dando a conhecer ao público mundial a magnífica capacidade de criação desta nova parelha de autores italianos. O filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro na cerimónia de 1948, sendo elogiado pela Academia que referiu ser este filme “a prova para todo o mundo que o espirito criativo pode triunfar frente à adversidade”. De facto, a história de dois jovens engraxadores que perseguem um sonho tão simples e que, apesar de tudo, têm de lutar com todas as suas forças contra o poder opressivo de uma sociedade arruinada onde se esqueceram os valores básicos de moral, está revestida de um poder brutal.
Este tema viria a ser novamente abordado naquela que é, seguramente, a obra-prima do realizador. Ladrões de Bicicletas choca pela simplicidade com que nos consegue prender à tela e fazer sentir cada aflição daquele homem que procura a sua bicicleta roubada. Na verdade todo o destino deste homem centra-se neste objeto que parece tão vulgar a nós que olhamos de um período temporal avançado. Parece quase como ver uma tragédia grega em que pai e filho são os heróis que sofrem todo o tipo de provações. Trata-se, aqui, de uma epopeia do homem comum, de um herói do dia-a-dia como tantos outros. Os constantes desafios que se lhe deparam e a perda da esperança levam-no, num momento de desespero, a cair no mesmo poço de imoralidade onde toda a cidade parece estar imersa. A conclusão, com pai e filho de mãos dadas, misturados na multidão de gente que segue a passos lentos o também vagaroso elétrico, imagem esbatida pelo rude preto e branco, é uma visão esmagadora e emocionalmente desgastante. É quase um momento catártico para as personagens quando estas se misturam na multidão como se fossem apenas mais dois seres no conturbado contexto social daquela Roma despedaçada.
O tom melancólico e as imagens fixas de multidões cabisbaixas, de passo lento, moribundas, contrasta com a solidão de alguns personagens, como o velho Umberto em Umberto D que luta apenas por viver cada dia que passa na companhia do seu fiel companheiro canino. Esta necessidade de captar o real de uma forma fluida, sem subterfúgios, terá nascido das observações do realizador enquanto criança nos bairros suburbanos devastados pela pobreza onde viveu.
Vittorio De Sica aventurou-se também em cinema que retratava a classe mais elevada e com isto pôde fazer uma crítica feroz à sociedade hipócrita do seu tempo, seguindo assim os passos do seu conterrâneo Federico Fellini. Matrimonio à Italiana é o exemplo fundamental desta faceta do realizador, filme que conta com as participações de Sophia Loren e Marcello Mastroianni, os atores prediletos de Fellini, aqui “emprestado” a este grande realista.
Poucos realizadores conseguiram resistir ao derradeiro teste do tempo e tornar-se memoráveis. A maioria, principalmente aqueles da era pré-digital, acabaram por ser esquecidos e as suas obras destruídas pela erosão dos anos. No entanto, Vittorio De Sica acaba por atingir intemporalidade pela forma como retrata sentimentos humanos básicos e apela à humanidade, fazendo com que encaremos a realidade do ser humano.