«Em Parte Incerta»: casamento desfeito, crime perfeito

EstreiasOut14004

“Em que estás a pensar? Como te estás a sentir?
O que fizemos de nós?”

Tudo interrogações familiares em relações conjugais prolongadas e neste caso o ponto de partida para David Fincher erguer a sua obra mais recente. Em Parte Incerta é adaptado do livro de Gillian Flynn (no original Gone Girl), um verdadeiro fenómeno literário de 2012, e narra um determinado período da vida do casal Amy (Rosamund Pike) e Nick Dunne (Ben Affleck). Ainda que recorrendo a saltos cronológicos, a principal linha temporal é a que tem início no dia do seu quinto aniversário de casamento, quando Amy desaparece subitamente sem deixar rasto. À falta de evidências que expliquem logicamente o fenómeno, é Nick quem se afigura como principal suspeito. Segue-se toda uma investigação que conduz a trama até ao final e que por motivos óbvios não convém aqui revelar.

Todavia, para lá do desvendar dos meandros da narrativa, fulcral para a experiência sensorial ao longo da projecção, permanece a ressonância do que Em Parte Incerta oferece de mais substancial e reflexivo: por um lado, a abordagem das regras obscuras com as quais se joga na instituição casamento e o modo como a sua evolução pode transformar uma profunda intimidade na maior estranheza e distanciamento; por outro, a crítica social aos assustadores mecanismos de construção da “opinião pública” nos media, minados de agendas demagógicas quase sem relação com a verdade dos factos, mesmo tratando-se um caso da esfera privada.

Gillian Flynn escreveu o argumento, condensando as suas 420 páginas num texto que Fincher transformou em 149 minutos de pura tensão, e mesmo que ao livro se deva grande parte do mérito, o realizador não esconde o seu cunho. Quando, no início do filme, Nick sai do carro com o jogo “Mastermind” debaixo do braço, Fincher anuncia que este é um puzzle de resolução complexa no qual as peças se baralham uma e outra vez e até o espectador vai sendo manipulado quanto ao julgamento do caso e das personagens.

Gone Girl destaque

Com efeito, a qualidade deste projecto está alicerçada num conjunto de parelhas bem sucedidas, a primeira das quais é a colaboração directa entre Flynn e Fincher. Outro caso é o par de actores que desempenham os protagonistas, Ben Affleck e Rosamund Pike. O primeiro, por vezes mal amado pelo público (e convém dizer, com alguma razão), surge em bom plano enquanto protótipo masculino com origens no interior do país, na maior parte do tempo perdido na teia dos acontecimentos. A segunda é, no entanto, quem mais se revela, já que apesar de ter surgido em diversas produções com visibilidade este é de certo o melhor e mais destacado papel da sua carreira, que já se aposta poder valer-lhe uma presença na próxima cerimónia dos Oscars. Na equipa de Fincher regressa ainda a dupla Trent Reznor e Atticus Ross como autores da banda sonora, escolha quiçá inesperada tendo em conta a temática e o universo em causa, mas a verdade é que a densidade da trama se conjuga bem com o trabalho dos músicos norte-americanos, uma vez mais exímios na construção de ambientes e texturas ajustadas não só aos momentos mas também às características das personagens.

Elaborada mistura entre thriller e estudo social, Em Parte Incerta é um daqueles projectos em nome dos quais se suportam largos meses de estreias medíocres e é também (mais) um claro sinal de afirmação de Fincher como um dos principais autores contemporâneos do cinema norte-americano.

Classificação (0-10): 9

Em Parte Incerta | 2014 | 149 mins | Realização: David Fincher | Argumento: Gillian Flynn | Elenco principal: Ben Affleck, Rosamund Pike e Neil Patrick Harris

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