A «Fúria» de guerra que há em nós

EstreiasOut14029

 “Isto não é bonito, mas é isto que fazemos.”

Estamos em Abril de 1945, fase final da II Guerra Mundial, em território germânico. Fúria é o título desta ficção de guerra que mistura acção e drama e segue um pequeno pelotão norte-americano solicitado para missões de alto risco, teoricamente propensas ao fracasso graças à inferioridade tanto numérica como de meios disponíveis. Mas “Fúria” é também o nome do tanque no qual combatem estes homens que vemos escrito no canhão e surge repetidamente em plano. Afinal, este é tão somente o abrigo simultaneamente sentimental e concreto para sobreviverem no campo de batalha, a sua “casa” e o lugar eleito pelo realizador e argumentista David Ayer para melhor explorar e desenvolver estas personagens e suas inter-relações.

ensemble de actores que compõe o quinteto é, aliás, um dos pilares do filme, emanando uma camaradagem profunda e credível como poucas vezes se viu no cinema recente. É impossível não enaltecer o desempenho de Brad Pitt (Don “Wardaddy” Collier) como líder incontestável do grupo (que recentemente protagonizou uma considerável chacina de nazis em Sacanas Sem Lei), com uma prestação que equilibra bem a agressividade militar com a sensibilidade subreptícia, ou o de Shia LaBeouf, de alcunha “Bíblia”, que concilia a mortandade certeira de atirador com a profunda fé nos sacramentos cristãos. Porém, apesar da força destas prestações é Logan Lerman, como Norman, quem mais se diferencia e revela central para a trama, emprestando à personagem o seu olhar perdido perante uma realidade a que não pertence. É que embora à superfície ajam como “peixe na água”, todos estes combatentes estão seriamente traumatizados pela sua experiência passada, algo evidentemente contrastado pela chegada Norman, o arquétipo do novato, intelectual, pueril e não-violento, ao pelotão. Se Ayer pretende transmitir alguma mensagem com Fúria, a jornada de Norman é definitivamente o seu veículo: será que a guerra forma o carácter do homem e lhe confere coragem? Ou será que as suas circunstâncias absorvem o homem e o transformam numa “máquina”? Apesar do espaço deixado para a subjectividade, a segunda hipótese parece a mais plausível.

Apesar da alegoria, nem por isso fica de fora a dimensão gráfica da violência (o rótulo “terror de guerra” não lhe assentaria mal), portanto realista, exibindo-se cadáveres despedaçados e mortes sangrentas. Na linha do seu melhor trabalho até então (Fim de Turno), o realizador norte-americano mantém a pujança nas sequências de acção, expectáveis neste género de produção e vibrantes quanto baste para deixar o espectador em suspenso, ao passo que a presença de efeitos criados digitalmente é subtil e nunca compromete a credibilidade da acção, dos cenários e muito menos do rigor histórico do equipamento bélico, que desde os Sherman americanos aos Panzer alemães foi cedido por museus para a rodagem.

Mas se, por um lado, Ayer mantém a identidade nos aspectos referidos, por outro, esta é de longe a sua realização com maior profundidade emocional, que surpreende precisamente pela vertente mais poética e metafórica. É expressão disso mesmo a presença simbólica do cavalo branco no início e no final (esse ser de pureza, bravura e liberdade que comove até o mais duro dos militares), a sequência de planos sobrepostos e sem som adornados apenas pela (magnificamente soturna) banda sonora de Steven Price ou a textura que dezenas de aviões formam no céu. A fotografia, dominada pelos castanhos e cinzentos sem vida, apenas quebrados por ocasionais explosões, rastos de tiros ou pelo genérico, em vermelho-sangue, acentua um ambiente pesaroso em que o próprio material bélico por vezes se torna personagem: não só é o caso do emblemático tanque “Fúria” mas também dos demais, captados junto ao solo esmagando tudo à sua passagem.

Sem revolucionar o género, David Ayer supera-se ao abordar um acontecimento incontornável do século XX de forma invulgarmente universal e tocante através de uma jornada deveras pessoal, captando a essência brutal da experiência de guerra bem como a sua capacidade para quebrar a mente e a acção humanas.

Classificação (0-10): 8

Fúria | 2014 | 134 mins | Realização e argumento: David Ayer | Elenco principal: Brad Pitt, Shia LaBeouf e Logan Lerman

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