Psicanalista, filósofo e um dos mais mediáticos teóricos contemporâneos, Slavoj Zizek reúne nesta colectânea ensaios em torno da obra de importantes autores na história do cinema. Conciliando na sua visão contributos tão diversos como a teoria social de Marx, a filosofia de Hegel ou, mais frequentemente, a psicanálise de Lacan, analisa a intencionalidade presente em cineastas como Krzystof Kieslowski, Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovski, David Lynch, entre outros.
Arriscando o excesso de simplificação, Zizek demonstra no essencial que, sendo uma arte da ilusão e da fantasia por excelência, o cinema diz muito em termos simbólicos, sociais e ideológicos do contexto real em que é produzido. Neste livro cabem as múltiplas subjectividades dos filmes mas sobretudo do olhar do espectador, os aspectos simbólicos e zonas menos decifráveis inerentes à vertente estritamente estética das obras, bem como à dimensão psíquica do seu criador, ocultas por detrás de cenas apresentadas como transparentes, produtos de puro entretenimento de massas de Hollywood.
Salientam-se os ensaios dedicados ao hiper-enigmático David Lynch, à análise da trilogia de Kieslowski, em particular a trajectória da personagem feminina em Azul, à espiritualidade pagã em Tarkovski e à mestria de Hitchcock que transcende claramente o simples entretenimento.
Nas inconsistências da trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, o pensador esloveno encontra reflectidos alguns dos aspectos fundamentais do mundo actual. Em Estrada Perdida, de Lynch, observa uma representação do mundo dos sonhos e do imaginado como algo complexo e inconsistente face ao qual o espectador deve manter a distância e continuar a considerá-lo impenetrável. Considera igualmente inacessível Solaris, o misterioso planeta que dá nome à obra de Tarkovski, uma fantasia omnipresente mas indecifrável e, por isso, traumática para quem tenta estabelecer comunicação com ela.
São apenas exemplos de uma linha de argumentação central: a de que a familiaridade das imagens esconde o seu carácter fabricado e de que a maioria das narrativas ficcionadas se limitam, ainda que de modo meramente implícito, a legitimar ideologicamente a realidade socio-política em que o filme existe de facto. As lágrimas que o autor escolhe destacar no título são não só uma referência ao fragmento da Eneida de Virgílio mas também a expressão da profunda interpassividade na relação entretenimento-público, marcada pela emotividade encenada, como a de carpideiras que choram em funerais ou de plateias que riem e aplaudem em programas televisivos.
Para ampliar a compreensão da abordagem de Zizek, recomenda-se o visionamento do filme recém-estreado O Guia de Ideologia do Depravado (que sucede a O Guia de Cinema do Depravado), realizado por Sophie Fiennes, pois embora menos aprofundado que o livro é igualmente provocador e mais abundante em exemplos, com a vantagem da utilização de excertos das obras a acompanhar o discurso.
Ocasionalmente no limiar da sobreinterpretação, com alguns equívocos e por vezes forçando os filmes a encaixar na teoria, e não o inverso, Lacrimae Rerum recompensa definitivamente o leitor com uma profundidade e inteligência analítica admiráveis e um modo refrescante de pensar cinema, que interessará a académicos, cinéfilos e não só.