Subordinação à luz dos «Olhos Grandes»

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Olhos Grandes conta a história de Margaret Keane (Amy Adams), pintora cujos retratos surreais maioritariamente de crianças com olhos desproporcionais são a certa altura apropriados pelo novo marido Walter (Christoph Waltz), que publicamente se assume como verdadeiro autor dos quadros, apoderando-se não apenas do reconhecimento artístico mas também dos dividendos. Não menos importante é o facto de se tratar da mais recente obra de Tim Burton, um dos maiores mestres do cinema fantástico que associamos à criação de universos bizarros, a marcas de artifício delirantes e a personagens que oscilam frequentemente entre a animação e os corpos reais.

Sendo o projecto de Burton com o menor orçamento desde 1985, Olhos Grandes foge um pouco ao que tem vindo a ser a sua carreira e expressa a vontade de regressar a um tipo de produção mais independente e de menor escala com uma trama muito terrena, ligada a questões humanas com as quais é fácil criar identificação. Ainda que mais contida, nem por isso deixa de estar presente a marca inconfundível do cineasta, seja nas cores alegres em tons pastéis, nas casas que relembram o subúrbio de Eduardo Mãos de Tesoura ou nas cenas em que Margaret tem visões de pessoas com os olhos enormes que quase saltam das órbitas. No entanto, encontram-se maiores semelhanças com O Grande Peixe (Olhos Grandes é a produção de Burton com mais cenas de exterior e luz solar desde este filme de 2003) e sobretudo com Ed Wood (Walter e Margaret são também, cada um à sua maneira, dois aspirantes a artistas), ainda assim com níveis de devaneio mais controlados. A explicação da similitude deve-se principalmente ao facto de serem escritos pelo mesmo par de argumentistas, Scott Alexander e Larry Karaszewski, também autores de Larry Flynt e Homem na Lua, que em Olhos Grandes tiveram ainda parte activa não só na produção como no processo de obtenção dos direitos da história de Margaret Keane.

Baseado em factos verídicos sobre uma das primeiras grandes fraudes da arte moderna, este projecto estava em preparação desde 2003 e implicou uma profunda pesquisa em bibliotecas de São Francisco, mas só com o envolvimento directo da própria Margaret Keane (que tem direito a um cameo) pôde finalmente avançar. Marcadamente humano e suportado em grande medida pelo trabalho da dupla de actores Amy Adams e Christoph Waltz, o filme coloca em discussão dois grandes conjuntos de questões que têm em comum algum tipo de subordinação.

Por um lado, a submissão feminina face ao homem na relação conjugal e afectiva, habilmente recriada pelas prestações de Adams, enquanto mulher detentora do real talento que aceita continuar a produzir quadros remetida à solidão do seu estúdio, e Waltz, como homem oportunista e persuasor sem escrúpulos que retira todo o proveito das criações da sua esposa. Por outro lado, o questionamento do que é a verdade da arte e a marca autoral (ironicamente num dos filmes em que a de Burton se mostra mais discreta), com o reconhecimento público de um autor que não passou de uma fraude, e a subordinação do campo artístico à lógica economicista. Neste aspecto, a cena de Margaret no supermercado é fundamental: primeiro passa por uma estante com latas de sopa Campbell, numa alusão a Andy Warhol e à sua revolucionária abordagem artística pop, para depois se chocar perante uma pilha de reproduções dos seus próprios quadros, autêntica banalização mercantil do seu talento. Está em causa a convicção do crítico que, desdenhando as obras de Keane e sua explosão de popularidade, em determinado momento afirma: “a arte deve elevar, não agradar”.

Nota para a banda-sonora do habituée e sempre inspirado Danny Elfman, embora neste caso o destaque vá para as canções originais de Lana Del Rey: a primeira (“Big Eyes”) porque marca o adensar do drama de Margaret na referida cena no supermercado, que é um dos momentos altos do filme; a segunda (“I Can Fly”) porque acentua a libertação e a reposição da justiça.

Longe dos tempos mais brilhantes de Burton, Olhos Grandes não deixa de valer a pena pela história de contornos invulgares que poucos realizadores contariam melhor, pelo desempenho da dupla de protagonistas e pelas questões de género e do mundo da arte que discute.

Classificação (0-10): 7

Grandes Olhos | 2014 | 106 mins | Realização: Tim Burton | Argumento: Scott Alexander e Larry Karaszewski | Elenco principal: Amy Adams, Christoph Waltz e Krysten Ritter

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