A 13º edição do DocLisboa arrancou oficialmente em idioma italiano com Bella e Perdutta, o terceiro filme de Pietro Marcello que ofereceu uma viagem poética por uma história que parte da morte de Tommaso Cestrone, um homem que voluntariamente decidiu tomar conta de um palácio destinado ao abandono, e de fazer cumprir o seu de salvar um jovem búfalo que tinha a seu cuidado. Segue-se uma jornada pela Itália profunda em tom de conto fadas mas fortemente ancorada ao real, desde o panorama de desastre ambiental da região de Campania à própria condição de subordinação dos animais face à lógica de mercado inventada pelo homem, passando ainda pelo esforço de sobrevivência dos mais desafortunados face ao poder desmedido das elites. Início inspirador e condizente com um festival cuja marca é a relevância social, histórica ou mesmo cultural.
Praticamente ao mesmo tempo decorreu, para os fãs e não só, a reposição do documentário biográfico de 2002 intitulado Frank Zappa, Phase II The Big Note, que dá a conhecer o prolífico ícone musical mais profundamente através de entrevistas suas e de ex-membros da sua banda, bem como raras imagens de arquivo em que é possível vislumbrar o rapaz que cresceu para se tornar um mito.
Ao segundo dia de festival sobressaiu um dos temas mais prementes do mundo actual: o exílio e as dinâmicas (ou falta delas) de emigração. Destinacija_Serbista, de Želimir Žilnik, um dos homenageados deste ano, levou à Cinemateca Portuguesa um olhar sobre o sistema de asilo sérvio actual, um retrato pertinente sobre a dureza dos obstáculos encontrados pelos deslocados e o drama das suas lutas por um existência digna com a qual é fácil empatizar. Sensivelmente no mesmo horário, exibiu-se um documentário sobre Chantal Akerman cuja morte recente o transformou em homenagem. I don’t Belong Anywhere – Le Cinéma de Chantal Akerman passa em revista a carreira da realizadora visitando os locais por onde a cineasta passou nas suas viagens ao mesmo tempo que a acompanha no seu derradeiro trabalho No Home Movie, também em exibição no DocLisboa.
Mais para o final da noite aguardava-se uma sessão muito particular, não apenas pelo filme em questão mas por ser de acesso limitado (acreditados e portadores de voucher), o que acabou por não permitir encher a sala. Tratava-se de um raro e inaugural olhar cinematográfico sobre o mega-fenómeno Daft Punk, desvendando algum do mistério por detrás da banda. Com recurso sobretudo a testemunhos directos de personalidades que lidaram de perto com a dupla Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter, acompanha-se o seu percurso desde os primeiros projectos musicais à conquista de dois Grammys e da popularidade planetária. Daft Punk Unchained é sem dúvida um documento valioso que ao se aproximar dos bastidores do duo nunca se coíbe de enfatiza o seu ethos incorruptível e seu genuíno talento.
Os destaques do primeiro sábado de DocLisboa’15 são inteiramente centrados em território português. João Canijo e Anabela Moreira apresentaram no Cinema São Jorge o seu Portugal Um Dia de Cada Vez, projecto que levou a actriz a percorrer durante um ano múltiplos lugares da região de Trás-os-Montes a pedido do realizador e que os conduziu a um quase acidental documentário do país profundo, de pessoas, sobretudo mulheres, envelhecidas, isoladas e de certo modo esquecidas. Para que não caia no esquecimento um músico marcante no panorama do rock em Portugal, Paulo Abreu reuniu filmagens realizadas entre 1994 e 2013 para fazer justiça no grande ecrã a Filipe Mendes, mais conhecido por Phil Mendrix, frequentemente considerado um dos melhores guitarristas nacionais de sempre.
A fechar o primeiro fim de semana de festival teve lugar a projecção de Listen To Me Marlon, certamente uma das melhores obras de toda a programação. É nada menos que o definitivo documento fílmico sobre a figura de Marlon Brando, através das suas próprias palavras registadas em gravações audio de sua autoria. Absolutamente fascinante a (re)descoberta através das suas ideias de uma das estrelas do cinema mais reservadas, recapitulando uma carreira oscilante uma carreira cujos papéis reflectem os valores e o estado de espírito de Brando em cada fase da vida: um homem de causas, verdadeiro rebelde e humanista, não menos apaixonado pela verdade da representação mas também desencantado com a máquina industrial que faz mover a sétima arte.
Para os mais interessados em história do cinema a Culturgest recebeu Cinéma documentaire, fragments d’une histoire. O título é claro: não se pretende em menos de uma hora subsumir toda a história do cinema documental, apenas pensar fragmentos da mesma, citações nem sempre apresentadas cronologicamente de Robert Flaherty, Dziga Vertov, Johan van der Keuken, Guy Debord, Joris Ivens, Luis Buñuel, Shohei Imamura, Pierre Perrault e outros. Mais do que fazer a história do documentário, o filme de Jean-Louis Comolli narrado pelo próprio ambiciona reflectir a forma do próprio cinema documental, a evolução técnica, a objectividade da abordagem e a ficção que todavia comporta.