Consciente de se tratar de um documentário intitulado Safari, o espectador poderá sentir-se desconcertado logo no plano inicial, que captura com subtil ironia a farsa de incursão na vida selvagem a que assistirá em seguida. Escuta-se o som de trompa tocada por um homem em traje bávaro, diante de um bosque de aparência europeia. Esta será, de resto, a única música presente no filme, a inaugurar e a encerrar o desfile de imagens grotescas que Ulrich Seidl captou entre a Namíbia e a África do Sul.
É nesta região que se encontra um insólito resort de férias, onde famílias de turistas exploram mais uma experiência que o dinheiro pode comprar: matar de forma guiada e controlada belos animais selvagens. Aqui, encontram um catálogo do qual podem selecionar espécies para caçar, cujo preçário varia conforme a raridade. Depois, em ambiente artificial e devidamente acompanhados por um funcionário empenhado em proporcionar aos visitantes um ritual de “grande caçador”, podem finalmente disparar o tiro fatal e contemplar a conquista de forma higienizada. Chamam “peças” aos animais e “suor” ao seu sangue, sempre que possível ocultado das fotografias que orgulhosamente captam junto do troféu/cadáver para memória futura. Aos olhos do caçador, a imponência do animal é mais admirável já estendido no solo, posteriormente esfolado para aproveitamento da pele ou embalsamado para exibição na parede.
Com inúmeras situações claramente encenadas para a câmara, Safari explora a fronteira do real sem adulterar o objeto, uma meta-encenação dentro da própria teatralidade da caça nos moldes em que é praticada. Bastante fiel ao seu registo, Seidl apresenta uma composição de planos extretamente cuidada e de enorme precisão formal (excepção feita às cenas de caça em tempo real), sempre com sensibilidade na gestão do tempo, deixando espaço à reflexão. Um dos seus maiores méritos consiste precisamente no distanciamento e na frieza da realização, que potencia a cada plano toda uma discussão ética, todavia sem tomar evidentemente um lado. Esta neutralidade intencional e difícil de encetar transfere toda a subjectividade para o espectador, que dependendo da sua posição tanto pode estar diante de um filme de terror como de um belo episódio sobre a relação do homem com a vida selvagem.
O facto é que esta é uma relação essencialmente de consumo da natureza, de culto do ego e de dominação do homem sobre o meio, sobre todas as formas de vida (volta a ser este o olhar do realizador depois de ter captado o turismo sexual de europeus no Quénia em Paradise: Love). Face a um ambiente claramente neocolonial, o filme vinca simbolicamente o racismo subliminar ali existente ao dar voz apenas aos intervenientes brancos, já que os negros são mera mão de obra para o trabalho sujo do empreendimento, e dá tempo de antena aos primeiros para revelaram as suas convicções e lançarem, mesmo que inconscientemente, a discussão. Desde a observação de que os negros são detentores de estruturas musculares e ósseas distintas, tornando-os potencialmente melhores atletas, à afirmação de que “a caça ajuda à propagação dos animais e beneficia a economia de países em desenvolvimento”, está presente no discurso uma superioridade condescendente e um perigoso antropocentrismo, cuja implicação com algumas das maiores tragédias da história (do colonialismo ao fascismo) foram já assinaladas pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Afinal, a ideia constantemente presente é a de que são “apenas animais”.Profundamente provocador, Safari aproxima-se do território da docu-ficção e deixa no ar uma conclusão triste mas cada vez mais verdadeira (fazendo uso da palavras do proprietário da estância): “este planeta estaria bem melhor sem a espécie humana”.
Classificação (0-10): 8
Safari | 2016 | 91 mins | Realização: Ulrich Seidl | Argumento: Ulrich Seidl e Veronika Franz