ENTREVISTA: Pedro Pinho

pedro pinho foto

A propósito da estreia do filme Um Fim do Mundo, de Pedro Pinho, a 7 de Novembro, o Cinemaville entrevistou o realizador. Um Fim do Mundo resultou de um concurso lançado pela Câmara Municipal de Setúbal para a realização de projectos cinematográficos sobre o bairro da Bela Vista. Com financiamento para uma curta metragem Pedro Pinho conseguiu que se tornasse numa longa metragem, entre desafios de ordem prática, financeira e meteorológica, ele saiu vencedor e o resultado está aí para se comprovar. Um filme para conhecer, antes da sua estreia, no Cinema City Alvalade – Lisboa, e Cinema Charlot – Setúbal.

Cinemaville: Um Fim Do Mundo fala-nos de uma fase muito peculiar da vida que é a adolescência, um preâmbulo em que somos crescidos o suficiente para termos vida social mas sem as obrigações formais de um adulto. O filme espelha algum sentimento saudosista e autobiográfico?

Pedro Pinho: Em primeiro lugar obrigado pelas perguntas e pelo tempo dedicado a pensá-las, a elas e ao filme, tão raro na maior parte das entrevistas que leio por aí…

O filme Um Fim do Mundo nasceu de um conjunto de ideias, observações e interrogações que fui tendo e que se concentraram à volta desse período do final da adolescência. Por um lado, algumas coisas que senti que estavam à acontecer nessa geração que atravessa agora essa idade e que tive curiosidade e vontade de compreender. Coisas que se relacionam com a forma como as pessoas se encontram, se conhecem, se aproximam, se tocam. Sinto que isso mudou muito nos últimos anos – e sobretudo em relação às gerações anteriores – não só o facto de haver uma série de facilidades fantásticas proporcionadas pelas tecnologias mais recentes, mas também me pareceu que ocorreram uma série de simplificações, de cruzamentos, de ultrapassagem de categorias sociais obsoletas (de género, raciais, eventualmente até de classe), de gestos mínimos que podem apontar para uma outra liberdade, para uma outra maneira de estar junto. Não tenho a certeza, mas o processo de construção do filme e o próprio filme parecem falar um pouco disso, do aparecimento de uma nova realidade social, de um novo tecido na periferia de algumas cidades portuguesas (onde vive a enorme maioria da população mais jovem). Com muitas questões por resolver, mas também liberto de uma série de cangalhas – que a minha geração ainda carregou – através da criação de um novo sistema de referências e de desejos; através da introdução de um conjunto de propostas culturais e ideológicas que eu penso que se irão apoderar lenta mas inevitavelmente do mainstream.

Por outro lado, surgiu de um sentimento que eu me lembro de atravessar, de indefinição radical. De um tempo em que te permites vagabundear porque, apesar de ter acabado a idade da infância e todas as tuas capacidades estarem no auge do seu desenvolvimento, não entraste ainda inteiramente nesse outro mundo infernal que te irá necessariamente apanhar através do trabalho, ou então da falta dele. Desse pedaço de vida em suspenso em que o que importa mesmo são os outros, as bebedeiras de desejo, o sol, a praia, andar nas ruas, desafiar o que existe.

No fundo, se for ver bem, acho que este filme é mais uma procura de resposta a duas obsessões que tenho e que não consigo largar em tudo o que faço ou penso fazer: o Trabalho e a Europa. Dois equívocos colossais, dois flagelos que, na minha opinião, assolam a humanidade em surdina, dominam a vida e me ocupam a atenção, o tempo e a energia toda. Não sei se isto responde inteiramente à questão, mas claro que sem falar de saudosismo ou de um registo minimamente autobiográfico, posso afirmar que o filme nasce da minha experiência pessoal, claro. Também por isso tive tanto gozo em usar a faixa das Mercenarias, que é um registo musical completamente alheio àquele grupo de pessoas, àquele tempo e àquele lugar.

CV: As restrições de produção e diversas contingências vão conduzindo a ideia teórica de um projecto até um outro ponto, que não é melhor nem pior, mas necessariamente diferente. Como foi lidar com essa dinâmica de reformulação do filme? E como é que ainda assim se conserva o cerne da intenção?

PP: Acho que é isso que torna a actividade de fazer cinema – que há-de ser uma das coisas mais frustrantes e penosas do mundo – em algo de tão viciante.

Tenho a sensação que um filme acaba sempre por ser muito menos e muito mais do que aquilo que imaginámos. Muitas vezes temos que ver desaparecer, durante a rodagem ou mesmo na montagem, aquilo que mais desejámos na ideia inicial e agarrarmo-nos a outras jóias, a coisas que surgiram no meio da batalha, no confronto, na dialéctica, e que acabamos por amar mais do que as ideias que perdemos. Por ser aquilo que está ali, com toda a sua substância, presença e poder de encantamento. Acho que é mais ou menos o que acontece com os narizes compridos, os dedos tortos, os seios caídos das pessoas que amamos e que um dia deixam de ser elementos estranhos para passar a ser o centro palpável de toda a paixão que depositamos naquela pessoa. Neste filme essa dinâmica foi especialmente dolorosa.

Quando escrevi o argumento havia duas ideias que eram centrais. Sendo a primeira essa sensação de deambulação sem propósito que tem o seu auge na praia, nas brincadeira na água, no rosto enfiado na toalha a ouvir passos que se aproximam pela areia, no sol, na observação distante dos outros ao longe. Depois, queria que o filme acabasse com uma explosão. Um gesto violento e radical de fúria inconsistente, não-programática, contra o mundo. Esse gesto deveria provocar um apagão eléctrico  generalizado, o último terço do filme seria passado na escuridão, através das ruas dos bairros, ao encontro dos vizinhos, nas escadas dos prédios, para finalmente acabar em silêncio no interior de um quarto escuro.

Nos anos 90 vivi uma noite dessas. Uma vez uma cegonha qualquer provocou um corte total na rede eléctrica da cidade de Lisboa e arredores durante largas horas. A única fonte de luz eram os faróis dos carros e as fogueiras. As pessoas no bairro onde eu vivia juntavam-se nas portas da rua à conversa e à espera de novidades, acendiam pequenos fogos. Só quem tinha um rádio a pilhas tinha acesso ao que se passava no resto do mundo, através de emissoras nacionais. Esse momento foi revolucionário para mim, em poucas horas configurou-se a possibilidade de uma vida inteiramente diferente. Claro que era isso que eu pretendia recriar e trazer para o filme. Por alguma incapacidade minha de adaptar esse fervilhar às condições materiais e logísticas que foram possíveis e porque nessa noite começou a chover torrencialmente, essas cenas ficaram reduzidas a quase nada.

Depois durante a montagem tive que recentrar o filme e, com a ajuda dessa personagem fortíssima que é a Yara (que se revelou por inteiro na sala de montagem), ver nascer nele um novo fôlego  encontrado na cena da praia, na sensualidade dos corpos e nas tensões positivas e negativas entre as duas raparigas. Posso ver milhões de vezes sem deixar de me deliciar a cena da areia no cabelo entre a Yara e o Idalécio. Seria impossível eu escrever aquilo, surgiu assim, ali.

UMFIMDOMUNDO1

CV: O filme não pretende apenas retratar um dia da vida de um grupo de jovens que vive num bairro social, que poderia ser captado sob a forma de documentário. Ao fundir a linguagem da ficção e do documentário acrescenta-se-lhe outras dimensões. Quais são os principais desafios de trabalhar na fronteira de duas linguagens tão diferentes mas que se complementam tão bem?

PP: Acho precisamente que a vantagem de trabalhar num campo que se assume claramente como ficcional é a de se poder acrescentar as camadas e dimensões que desejamos. No filme foram introduzidas algumas dimensões, desde os locais que atravessam, às situações, aos gestos ou ao teor de algumas conversas que não aconteceriam se eu estivesse a fazer um documentário. Até porque aquele grupo de pessoas não existe, o seu quotidiano não é aquele, etc.

O que não impede cada um dos actores de se rever na sua personagem. Pois ela foi feita a partir do material que cada actor trouxe. Foi com isso que demos corpo à função dramatúrgica que cada personagem desempenhava para servir a narrativa.

Essa metodologia de base um pouco documental – no sentido em que se apropria de alguns dados da realidade independentes da ficção, da improvisação, da espontaneidade – consiste em estabelecer um acordo com os actores em como iremos esticar a corda, filmar para além dos limites do acção/corta, procurar captar uma verdade qualquer na distração, no esquecimento, no que surge quando não se pede nada, na gestão do desconforto. Penso que é ela que permite abrir um buraco que nos faz mergulhar no universo ficcional, esquecer que existe uma câmara, uma sala, sentir que estamos lá. Isso para mim é importante, esse efeito da suspensão temporária da descrença, uma hipnose com os seus vários graus e efeitos. Como diz um amigo, o Luis Miguel Correia, sentir a vidinha.

CV: Um dos aspectos que o torna ficção é a existência de um argumento ficcional e de diálogos pré-estabelecidos. Como foi trabalhar com os actores, houve uma direcção ou foi um trabalho de cooperação?

PP: Houve um trabalho de cooperação no sentido que referi atrás. Tinha uma base ficcional e uma dramaturgia mínima para cada um dos personagens – 5 linhas escritas num pedaço de papel. A partir dali acrescentámos durante todo o processo. Não só com os actores, mas também com todo o grupo de pessoas que participou nos castings e nas oficinas de dramatização. Foi daí que recolhemos os dados para escrever o argumento.

Depois os actores foram deixados a desenrascar-se perante o pouco que lhes foi pedido. É por isso que, na minha opinião, são tão fabulosos… A única combinação era que nunca se desmanchassem. Era-lhes pedido para nunca olhar para a câmara nem falar com ninguém da equipa, mesmo quando não sabiam se estávamos a filmar ou não. Esquecer a presença da equipa e existir com base nas balizas ficcionais que encarnaram.

Para além disso tentámos fazer alguma gestão da informação e da ignorância sobre o que se iria acontecer a seguir, para poder registar as reacções naturais ao que se passasse. Plantávamos algumas frases que mudavam o rumo a cenas previamente ensaiadas, provocações, desafios. Experimentámos vários jogos.

CV: Um Fim do Mundo enfoca o bairro da Bela Vista, em Setúbal, tal como outros dois filmes Cama de Gato e Bela Vista. Há planos que se repetem entre eles, como peças de um puzzle que se completam e nos mostram uma figura maior do que a mera soma das partes. Como é que estes três filmes simultaneamente se destacam individualmente e se completam ao mostrar diferentes aspectos da vida deste bairro?

PP: São 3 olhares diferentes que partem de posturas radicalmente distintas. O Bela Vista é um documentário de base estritamente observacional. O Cama de Gato parte de uma realidade concreta  para construir um percurso ficcional. O Um Fim do Mundo faz o percurso inverso, parte de um roteiro ficcional para ir ao seu encontro na realidade onde irá decorrer.

Mas todos eles nasceram de um período comum de 3 meses de pesquisa, répéragem e desenvolvimento no mesmo bairro, nas mesmas ruas, com as mesmas pessoas. Por isso achámos que fazia todo o sentido que as personagens se encontrassem, cruzassem, dialogassem, como acontece na realidade.

CV: Alargando o espectro da conversa, será que o modelo de financiamento do cinema em Portugal liberta o cineasta das lógicas de mercado e lhe dá mais liberdade de criação ou, independentemente disso, é um modelo insuficiente porque não abrange projectos suficientes e portanto constrange as produções nacionais?

PP: Não tenho a certeza que haja um modelo de financiamento único característico do cinema em Portugal. Acho que não. Este filme foi financiado para ser uma curta-metragem. O formato mais longo impôs-se durante o processo e na montagem. O que fez com tivesse um orçamento dez vezes inferior a outras longas, com uma ginástica orçamental gigante por parte das 2 produtoras para o conseguir acabar.

Há cada vez mais filmes que se fazem com relativamente pouco dinheiro e que produzem resultados surpreendentes, com uma enorme projecção no exterior e cá dentro, veja-se os casos do Gonçalo Tocha ou da Salomé Lamas por exemplo. Há outras pessoas que continuam a defender um cinema comercial feito para o grande público, mas ao mesmo tempo dependem inteiramente dos financiamentos públicos e não são vistos em lado nenhum. São modelos de trabalho e de financiamento muito diferentes, opostos.

Claro que nenhum filme poderá ser feito no contexto português a pensar que os bilhetes das salas vão cobrir as suas despesas. Simplesmente não há numero de espectadores suficiente, por isso de que lógica de mercado é que estamos a falar? Enquanto não forem inventadas novas formas de disfrutar da experiência do cinema, novos modelos de distribuição e exibição, pontes com outros países que falem a mesma língua e que possam fazer circular as várias cinematografias, é impossível pensar em alguma autonomia do cinema em relação aos financiamentos estatais. Claro que essa autonomia é desejável e até urgente (tendo em conta o panorama actual) mas estamos a léguas dela. Até lá dependemos do ICA ou – na sua ausência – da carolice, amizade, urgência e paciência de quem faz os filmes e das equipas que neles trabalham. Claro que este modelo tem alguns limites e não pode manter-se durante muito tempo.

Cartaz Um Fim do Mundo

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